100/sem poemas
39.
Numa palestra, o orador sorri maliciosamente antes de
revelar que o tempo é um anestesiador, e, quando chega ao momento das
perguntas, contenho o braço para não lhe perguntar: Quanto tempo o tempo
demora?
Ainda não estou completamente convencida de que o amor é uma
equação que se anula em 15 meses e 27 dias. Mas, quem sabe, talvez eu seja a
exceção que desmente os cálculos — afinal, o meu amor por ti sempre teve
dificuldade em tender para zero.
Recordo-me vividamente dos primeiros dias: aposto tudo no vermelho, sai preto, e sou a perdedora mais sofrida do casino. Todos me encaram, surpresos — nós, que sempre tivemos tudo sob controlo — por termos permitido que o fogo se alastrasse desta forma. E, durante meses, como todas as pessoas que perdem a casa num incêndio, torturo-me e questiono-me se podia tê-lo antecipado, entretendo a ideia de que talvez pudesse ter extinguido o fogo antes que tudo ardesse até ao chão. Ressoa em mim o momento que sucede ao silêncio de cinzas que tomou o ar, enquanto encaramos, sem pinga de sangue, o ruir de tudo o que construímos. E, interrompendo o silêncio, soltas, como um suspiro, que, apesar de tudo, esperas que eu saiba que poderei contar contigo para sempre. Mas sai-te da boca por puro hábito, responsabilidades que vêm com a profissão, e já nem a tua voz consegue abafar o som das sirenes que se aproximam.
Quebro o silêncio para te informar que vou passar para ir
buscar as minhas coisas, que prefiro que não estejas. Nesta altura, não sabia
que, no espaço de um ano, só te voltaria a ver duas vezes. Que te olharia olhos
nos olhos e perceberia que não fui a única a morrer quando me mataste.
Mas, ainda presa em abril, pedes-me, como se merecesses a
minha cortesia, que vá na calada da noite. Com a casa em obras, tentas evitar
que me vissem a desmontar o que construímos, como se a minha perda fosse apenas
uma vergonha para quem observa do exterior. Recuso-me. E, no dia combinado, por
volta do meio-dia, com o sol no seu auge, o tempo parece parar, durante o que
parece ser uma eternidade, quando, finalmente, o móvel que te pedi para montar
durante semanas está de pé. Como se me castigasses. O quarto, agora redecorado,
dá-me a sensação de que me vesti à pressa de passado e coloquei os pés no
futuro, onde és feliz, para te apresentar a fatura. Seguro o choro, com a
garganta apertada, até que, do outro quarto, a Sofia balança a cabeça entre
suspiros — como quem lamenta ter sido cúmplice desta deserção silenciosa — e me
pergunta se reconheço que és um falhado.
Mesmo agora, os meus olhos enchem-se de lágrimas quando me recordo que nunca senti que estivéssemos perto o suficiente, e tu nunca me quiseste mais longe. Já não o digo em voz alta, mas tenho saudades de te amar desmedidamente, mesmo sabendo, todos os dias, que era demasiado.
Não sei como andas nestes dias, mas, nos meus melhores dias, levo o nosso cão a passear. Desculpa, disse o nosso cão. Mesmo depois deste tempo todo… fiquei tão presa nos nós que atámos que me esqueci de te soltar. Acreditas que existem dias em que carrego o teu peso morto às costas? Levo o cão a passear e o sol bate-me na face como um lembrete suave de que um dia vou morrer. Que um dia tomarei outro corpo, sem os buracos de bala que deixaste em mim. Que um dia não terei de encarar a fria realidade de que nem por mim estiveste disposto a esquecer o que aprendeste na recruta. Ainda me culpo por ter perdido o teu amor, como se, num fim de tarde qualquer, tivesse descoberto na televisão que joguei os números da lotaria e, desde então, incapaz de me recordar onde raio guardei o bilhete, o procurasse incessantemente. Como se precisasse desesperadamente de uma prova de que aconteceu mesmo.
No Natal, a minha irmã comenta que, este ano, bastou fazer uma única dose da nossa sobremesa favorita, como quem finalmente se rende e encontra tréguas na tua ausência. Respondo com saudade na voz, como quando falamos dos nossos mortos. E sim, claro que já tinha ouvido a minha mãe a falar nisso, mas tu és mais velho do que eu, e por isso até há uns meses nunca tive provas de que o mundo, sem ti, continuaria a girar. A minha família lamenta — também lhes custou perder-te — mas falam mal de ti à volta da mesma mesa onde te costumavam guardar um lugar.
Fizeste-me tanto mal que estou certa de que é errado lembrar-me de quando me fizeste tão bem. Por outro lado, pensar em todo o mal que me fizeste é blasfémia. Representaste tão bem… gostava mais de ti antes de a cortina cair.
Estou certa de que irás conseguir, um dia, encontrar alguém que te ame melhor — com mais sorrisos e menos pressa — que não te obrigue a ser e a fazer melhor, e que te minta mais. Que não te faça sombra, que fale menos e mais baixo, que não se justifique tanto e que não ocupe demasiado espaço em todo o lado. Estou certa de que irás encontrar alguém que te ame melhor — e repara como digo melhor e não mais. Será que sentes a minha falta, que de mais maneiras que muitas tentei ser semente, água e sol para ti?
Numa conversa com uma amiga sobre uma relação longa, sorrio prontamente quando me diz que o amor deixa de arder e que passamos a amar o outro como se ama um irmão. E agora, que nunca seremos família? Será que fomos felizes? Será que a felicidade se mede? Será que posso avaliá-la de 1 a 10? E se te dissesse que te dava um 9? Nunca perguntaste, mas a vida tem-me retribuído em dobro tudo o que fiz por ti, e mal posso esperar que, um dia, entre encontrões e pontapés, te devolva tudo o que me fizeste a mim.
Posso fazer-te uma última questão? Enquanto chorava, estavas a tirar notas?
38.
Nesta nova vida passo recorrentemente em frente à casa que foi, um dia, nossa. Afasto sempre o olhar, como se a tornasse mais pequena por não reconhecer a sua presença. Arrepia-me a espinha saber que hoje habitam lá outras pessoas, assombradas pelos nossos fantasmas, pelas mazelas que deixámos nas paredes.
Atravessar aquela rua transporta-me para o dia em que fizemos as mudanças. Na urgência da vizinha em partilhar que viveu lá uns bons anos - e que foi lá que esbarrou com a felicidade pela primeira vez. Terá ela levado a felicidade toda? A realidade é que, enquanto lá vivíamos, dei por mim a procurá-la por toda a parte. Vasculhei nas gavetas, atrás do sofá, nas frechas do chão e até mesmo nos bolsos do teu casaco. Sempre foste tão esquecido que podias até ter-te esquecido que estiveste perto de ser feliz. Nunca lhe encontrei qualquer vestígio, o que me levou a duvidar que alguma vez tivesse morado por lá.
Quando fizemos nova morada, insististe em cultivar-me um jardim, que fosse tal como sempre me quiseste: vibrante, envolvente e intocável. Rejeitavas toda e qualquer ajuda, mesmo com as mãos ásperas e calejadas. Quando decidi, finalmente, sujar as minhas, foi por acaso que encontrei a felicidade enterrada no quintal.
As vizinhas espalham, como que sementes, rumores de que, desde a minha partida, os sussurros do silêncio ecoam por toda a casa e que o jardim que me plantaste cresce, ainda que hesitante. Ainda que por cima do corpo decomposto da felicidade.
37.
Nos dias de hoje, um café com os amigos em tudo se assemelha a reuniões secretas, onde assinamos contratos clandestinos no verso de guardanapos manchados, onde garantimos uns aos outros que ninguém tem a mínima ideia do que está a fazer. Onde são feitas promessas de sangue debaixo da lua cheia e trocados mapas e bússolas para o caso de nos perdermos ou de algum estar no caminho certo. Assimilei nas duas semanas que vivi com a Liliana que o único medo que nunca se deve perder é o medo de ser infeliz. Com a Ana, que mais vale uma mala feita do que duas mãos que te agarram pela garganta e, com a Aurora, a certeza de que me tornei a melhor pessoa que podia ser com tudo o que me foi tirado. Lembro-me de a ter conhecido e de sentir pela primeira vez que olhava um espelho. Passaram-se três anos desde a última vez que falámos, mas continua, todos os dias, a mudar-me. Não mantenho contacto com ela porque não estou pronta para descobrir mais nada sobre mim. Com o Stephen, a realidade de como seria a vida se em vez de rosnar e morder me tivesse continuado a esforçar para ser tudo menos eu. O peso de criar uma vida perfeita e no momento que descobrir que é minha, não a querer. Contigo, a versão triste de viver no futuro, ainda não chegaste e tenho pena que vás tão cedo, aliás preferia que não viesses. Prefiro ver-te menos para te perder devagar.
Esbarro contigo no corredor e pergunto-me se o mundo te fez benevolente ou se me falhou a mim. Surpreendes-te por ter nascido mulher e carregar toda esta luta dentro de mim, suspiras, como quem perceciona o que seria capaz de fazer com as mãos desatadas. Vivo por isso, com receio de que quando fores provar-te à vida, na prova dos nove, ela te faça cara feia e tu a ataques primeiro, que desmascares toda esta defesa por ataque.
De todas as vezes que tento mudar, volto ao começo e sou novamente todas as pessoas que fui outrora. Digo-te que "resiliência" é a minha palavra preferida, como se nunca tivesse odiado o meu corpo por flutuar, por curar todas as feridas. Nem tudo tem explicação e digo isto depois de tentar explicar a um grupo de estrangeiros a palavra "saudade". Comecei a escrever em português porque me entristecia saber que não conseguirias ler os meus poemas de outra forma e morreste antes que te pudesse mostrar algum. Deixaste-me sozinha, presa, com a língua entalada. É assustador pensar na quantidade de coisas que deixaram de existir desde que partiste, entre todas elas tenho mais saudades da vida antes de saber o que era a guerra. Entre as minhas melhores metáforas, reconheço que sempre conseguiste ver a nuvem que me seguia para onde quer que fosse e nunca desviaste o olhar, obrigada.
- Para a pessoa que apelidou os doces de Natal de "sonhos": Compreendo. Quem nunca quis agarrar os sonhos pelos dentes?
36.
Reconheci que eras tu, desde a primeira vez que te vi, por isso desde esse dia em vez de viver, esperei por ti.
Esperei por ti de olho pregado na porta e atenta aos teus amigos, talvez eles soubessem quando voltarias, se voltarias.
Esperei por ti como quem espera por quem não sabe se voltará.
Esperava por ti e sabia que te esperava.
Fazia tempo enquanto te via ocupado e ocupava-me, para não pensar que no tempo que perdia.
E toda a gente ria, irónico, eu que nunca esperei por ninguém passar a vida a esperar por ti.
Por ti maltratei corações, com a sensibilidade insensível de lhes dizer que não eram eles, eras tu.
E a tua vida prosseguiu, descolou e aterrou, e em todo esse tempo não vivi porque esperei por ti.
Quando a espera acabou, acolhi-te como se tivesses acabado de regressar a casa exausto depois de um longo dia, de lareira acesa e jantar pronto.
Esperei por ti certa de que o melhor estaria por vir.
35.
1 - Quando cheguei, as ânsias, a urgência de me dirigir a tua casa e apresentar-te ao abraço mais apertado que conseguisse, com a desculpa de que tudo não passava de uma tentativa de estrangular as saudades. Quando cheguei à tua porta não estavas. A caminho de casa, parei no supermercado e vi um casal a abraçar-se durante o que parecia demasiado tempo. Quanto tempo achas que dura um abraço? Dou por mim inúmeras vezes a desejar ter tido mais tempo contigo para te por frente a frente com as constantes questões inoportunas que me assombram.
2 - Mudámos como as árvores que avô costumava ter no quintal. Ainda me recordo do seu sorriso orgulhoso quando contava que ao juntar o ramo de uma árvore a uma de outro tipo, o ramo, contrariamente ao resto da árvore, continuava a dar o fruto da sua raiz de origem. Partilhou comigo vários saberes sobre agricultura e pecuária e tive o cuidado de examiná-los detalhadamente. Coloquei os melhores na cesta e triturei até se transformarem em poesia, não lhe fez diferença, o meu avô nunca quis de mim eco das suas palavras, mas a consciência de que foi ouvido.
3 - Ver as estimativas na televisão costumava dar-nos esperança. Engraçado, como o tempo nos mostra que antevemos constantemente de forma errada o local onde a bala atingirá o corpo.
4 - Num jogo de bebida, a Soraia é desafiada a identificar uma qualidade de cada pessoa presente na sala e de seis sou a única a quem elogia a aparência. Passo a noite em claro a tentar descobrir onde terei errado para toda a narrativa que construí ser reduzida a algo que não pude escolher. Talvez esteja a dramatizar, provavelmente todos os bons elogios já tinham sido utilizados.
5 - Choras desalmadamente, mas é o meu sangue e a tua faca. Os nós dados pela verdade não se desatam só porque te prendem. Creio que se ainda que por descuido disseres a coisa errada no momento certo corres o risco de alimentares a tua alma de restos o resto da vida. Estou convicta de que também tu um dia conseguirás perceber o amor como um eco da tua própria voz.
6 - Ainda me recordo de quando me enchi de coragem para te dizer que não se sabe nada até se olhar para dentro de uma casa inabitada. A casa inabitada, uma metáfora, claro, um eufemismo para um corpo inanimado, para olhos que como luzes, fundiram. Quase to disse tantas vezes, mas tu ages como se toda a tua vida tivesse sido um campo minado e nunca tivesses pisado uma bomba, como se nunca tivesses chorado e eu acredito. Há muito que aprendi que se a pessoa que amas não gosta de te ver vestida de preto talvez não devas convidar os teus demónios para jantar.
7 - A memória dos seis meses que passei do outro lado da
fronteira resume-se facilmente às cinco semanas que passámos a tomar banho de
água fria e à forma como a tua gargalhada ecoava todas as vezes que me ouvias
gritar assim que colocava o pé no chuveiro. Às quatro vezes que vimos a Aurora
a chorar, sem contar com os berros e pesadelos. O quarto que escolhi e ao
canto três "angelitos" como ela costumava dizer, o meu colchão dois meses no
chão e uma réplica de um quadro de Dali, sonhado pela sua esposa.
Conheci-te
leve e despreocupado, certo de que o que quer que estivesse para vir de mau
ainda não tinha chegado, tinhas razão. Reconheço que, tal como após um bom filme,
depois de ver alguém que amamos morrer há que aprender a caminhar, a ler e a
escrever outra vez. Mas espera, não chores, as pessoas constroem casas em cima
de nada o tempo todo e não vais ser exceção. E antes de tudo isto acontecer
costumávamos rir das pessoas em Girona que tinham por hábito dizer adeus
ao motorista em vez de obrigado, antes de sair do autocarro. Dizem que as
palavras perdem o significado se ditas com frequência. Hoje, ao olhar para
trás, sabemos que talvez os motoristas sejam as únicas pessoas no mundo sem temores.
- Tempos difíceis para os sonhadores
34.
1 - Duas crianças no autocarro de volta para casa jogam um jogo onde não existem respostas erradas. Apesar do cansaço, não consigo evitar sorrir e lembro-me de ti, do teu sorriso exagerado, do teu cabelo despenteado e da tua crença exacerbada de que sou imortal, mesmo depois de teres visto todo o sangue derramei no chão da cozinha.
2 - Encontro-te primeiro e apresento-te a ti próprio. Depois de todos os anos que passaste à tua procura, sou cupido deste amor que só se encontra no espelho. Ensino-te que o amor próprio é a melhor forma de autodefesa e passas o resto da vida contigo ao colo.
3 - Nos últimos dias o sonho recorrente onde o meu corpo é o teu corpo e por isso é um altar. Onde te tornas a minha primeira casa, antes de a vandalizar. Antes de numa atitude imprudente quebrar todas as portas e janelas, de rasgar os cortinados e permitir a toda a vizinhança que especasse incrédula para dentro. Por infortúnio não aconteceu assim. Invés disso, o meu corpo é um altar ao qual trazes rosas, onde te aproximas lentamente com os olhos fixados no chão como quem perde perdão por tudo o que fiz a mim própria.
4 - Em sonhos trazes sempre contigo lenços nos bolsos, entendes que escrever poemas e chorar em público são a mesma coisa.
5 - Repousas a tua cabeça no meu ombro serenamente enquanto o cheiro a arroz doce inunda a casa. Sentadas, lado a lado, na tua mesa da cozinha escrevemos uma carta em teu nome, onde agradeces a Deus a oferta, mas recusas o convite, ainda temos tanto para viver. Selamos a carta e sorrimos imediatamente, não vá a vida ter outros planos.
6 - Aguardo impacientemente, junto das portas de embarque do aeroporto de Barcelona, onde por instantes estou confiante de que se conseguem encontrar todos os portugueses do mundo. Intrusiva, por pela primeira vez em meses entender conversas do princípio ao fim e por consequência entrar de rompante na conversa de estranhos. Regresso a casa com um sabor agridoce na boca que a minha mãe insiste em disfarçar com cozido à portuguesa. Depois rimos em uníssono quando a minha irmã com o maior desagrado do mundo exclama: "Pára quieta um bocado, volta para casa, desde que nasceste que mais ninguém conseguiu dormir bem à noite." Esboças um sorriso e permaneces em silêncio, contudo, reconheço à distância que odeias os quilómetros, a diferença horária e o rolar dos dias. Que preferes não saber quando regresso, mas secretamente esperas sempre que seja amanhã.
7 - Um dia, se tivesse tempo, gostava de acordar cedo, de me sentar frente a frente com a verdade e descobrir o que come ao pequeno almoço. Saber a que sabe o meu coração. Como é ser tão desejada e desiludir constantemente. Dizer-lhe que me magoou repetidamente na esperança que peça perdão. Imagino-a imprudente e despreocupada sobre a quantidade de espaço que ocupa e com tanto em comum provavelmente nem caberíamos a mesma divisão.
8 - Paris é tal como imaginámos e como a minha mãe descreveu, as pessoas são sujas e no verão carregam baguettes debaixo do braço. Creio que é difícil encontrar o amor em Paris quando sempre o tivemos em casa.
9 - Em pesadelos dividimos tudo em comunhão de bens, acordamos durante a noite a espernear em prantos lado a lado. Os meus traumas são teus também e por isso construímos primeiro o muro e depois a casa.
33.
Descobrimos que a Aurora era a lenda mais temida da vila minutos depois de firmarmos o contrato que nos vinculava a viver sob o mesmo teto durante cinco meses.
Acordava cedo para restaurar móveis antigos e de todas as vezes que me encontrava no corredor desabafava que, 40 anos depois, ainda não tinha descortinado para que serviam os homens. Cantava durante toda a manhã, como se a voz dela nunca tivesse conhecido um fim, como se nunca a tivessem tentado silenciar, e por mais que me apoquentasse sempre considerei a alegria dos outros contagiante.
Grudava papéis na porta, onde pedia em letras maiúsculas, para não nos esquecermos de sorrir nem de trancar a porta. Após o que parecem ser milénios compreendeu finalmente que o inimigo estava do lado de fora e desde então nunca mais lutou contra ela própria. Em vez disso abraça-se durante a noite e diz a si própria o que quer que precise de ouvir para adormecer.
Não lhe incomodava o facto de ninguém lá em casa falar a sua língua materna. O castelhano foi o primeiro a atraiçoá-la e por isso, como castigo, vivia morto dentro da sua boca e só o usava para gritar. Ofendia os vizinhos tanto do alto da varanda do quarto, como cara a cara quando esbarrava com eles no meio na rua e sempre que encontrava alguém que a maltratou cuspia-lhes para os pés. Barafustava com toda a vizinhança da mesma forma que as crianças da vila se desafiavam a tocar à campainha do vizinho no meio da noite, sabendo que ele dorme com uma arma debaixo da almofada e tem uma mão leve.
Nas primeiras semanas senti pena que todas as suas crenças não a pudessem salvar e que ao mesmo tempo não a matassem. Demorei a assimilar se tinha sido engolida pela tristeza ou cuspida. Mas no fundo sempre me encantou a forma como, desde o início, a Aurora sabia que não era a doença e que ninguém a queria morta, apenas obediente e calada, que na linguagem das bruxas significa o mesmo.
Revelou-me que tinha doze anos quando o dentista da cidade onde nasceu tentou tocar-lhe pela primeira vez. Que a mãe, com naturalidade, a aconselhou a fazer o que ele quisesse, o dentista era de boas famílias e um amigo. A partir daí, em todas as consultas escapulia-se pela janela, como todas as princesas fazem assim que percebem que ninguém as virá salvar num cavalo branco. E depois corria até não conseguir mais. Sorria enquanto confessava que durante toda a vida nunca parou de correr, melhor ainda, que toda a sua vida foi uma corrida e que passou a correr. Percebi nesse dia que nasceu a gritar porque nunca ninguém teve o cuidado de a ouvir.
Contava-me tudo sobre o que sabia sobre o amor, ingénua e amarga, como quem descreve uma cor que nunca viu. Aos 19, encontrou o que julgava ser o amor da vida dela numa festa da universidade e mais tarde descobriu-o no melhor amigo dele. De acordo com ela podiam ter sido o terceto mais bonito que o mundo já conheceu. Nunca teve filhos, mas jura que ser uma Deusa é como dar à luz ao mundo. Que nunca mais deixou nenhum homem tocar-lhe desde que descobriu que tinha poderes e que por isso fogem rápido como as lebres.
O passatempo preferido das crianças da vila enquanto vivemos com a Aurora era brincar aos jornalistas. Cercavam-nos incansáveis com milhares de perguntas estudadas previamente. Se sabíamos que era bruxa e de todo o mal que já tinha feito. Não perdi tempo a explicar-lhes que vivemos tempo suficiente para fazer mal a toda a gente. Nem mesmo que a Aurora nos lavava a roupa e a deixava dobrada à porta do quarto. Talvez as bruxas sejam apenas mulheres indignadas com as migalhas que recebem da vida, mas que mesmo assim trazem fé nos bolsos.
Vivia convencida que todas as canções e mesmo os poemas de quem nunca a conheceu eram para ela. Talvez fossem, a realidade é que a Aurora é o tipo de mulher sobre a qual os homens escrevem livros. Talvez por isso se encontrasse espelhada em qualquer um, desde a mitologia grega às teorias científicas. Como se fosse ela uma hipérbole que ganhou pernas e saltou para a vida real, mas que continua a viver nos contos.
Mesmo agora de longe, recordo-me dela recorrentemente e arrepia-me a espinha, como se de uma vida passada se tratasse. Relembro a noite em que soltava gargalhadas, como balões de aniversário que rapidamente se espalhavam por toda a vila, enquanto as lágrimas que lhe corriam pelo rosto, no dia em que me contou sobre a primeira vez que foi internada num hospício.
- Aurora: Ainda bem que tive o cuidado de te olhar devagar e de te escutar cuidadosamente.
32.
Nasci numa segunda à tarde para não dar tanto trabalho à minha mãe, mas toda a gente sabe que nada de bom acontece numa segunda à tarde. Ou à tarde em geral. Tal como eu, também tu cresceste a espernear e a esmurrar tudo para chegar até aqui. Quando nos comparo a olho nu, consigo perceber imediatamente que fomos decorrências opostas da mesma experiência. Inversamente ao que aconteceu comigo, conseguiram amansar-te, domesticar-se e pôr-te a dormir cedo. Enquanto isso, eu do outro lado do país, cuspia a medicação e pontapeava tudo o que se aproximava. Tento ensinar-te tudo o que aprendi enquanto dormias, desculpa todas as minhas incontáveis tentativas de acordar o que adormeceram em ti, de fazer-te rugir e arranhar alguém. Mas este poema ainda não é sobre ti.
Da última vez que te vi finalizaste o teu discurso com a promessa de que eu nunca seria capaz de viver em paz e consegui sentir, a rastejar por debaixo da minha pele, a guerra que nunca me desertou. Nem a ti. A primeira vez que provaste do sabor da violência, o teu pai tinha chegado a casa tarde, bebido demasiado e subitamente um punho cerrado em direção à cara da tua mãe. Tu tinhas 6 anos. Nunca te consegui ensinar nada sobre muralhas e rancor, mesmo não passando o teu pai de uma besta de dentes afiados, tudo o que querias era fazê-lo sorrir, como qualquer miúdo. Sim, como qualquer miúdo, nós raparigas não nascemos assim, antes de nascer já somos fruto da desilusão, da desilusão do filho que queriam e não somos. Da desilusão de dar vida a uma fragilidade e não ao tiro certeiro de uma arma. Fazias apenas referência ao nome do teu pai quando o assunto era dinheiro, como se o teu pai não fosse o vinho caro que entornamos na carpete. Como se o teu pai não fosse erva daninha que se infiltrou na vida da tua mãe. Como se não fosse ele também o veneno que engoliste juntamente com aquela garrafa de whisky que bebeste num só trago para me mostrares que nada no teu pai te fazia estremecer. Depreendo que herdaste dele o sabor glorioso da vingança, que a mais nada se assemelha do que a boca sangrenta, esfomeada por mais. Confidenciavas-me que te preferias assim, como se alguma vez tivesses experienciado viver de outra forma.
Consigo com precisão definir o momento em que o teu coração se levantou do teu peito e começou a caminhar, a última vez que o vi. Já devia de ser a quarta vez que me ligavas para te ir buscar bêbado a um café qualquer. Sentamo-nos no patamar da porta de alguém, sei que eram por volta das 4 da manhã e toda a gente sabe que nada de bom acontece por volta dessa hora. Eram 4 da manhã e choravas agarrado ao meu braço, soluçavas entre os pedidos de desculpa enquanto admitias que embora eu fosse a melhor coisa que te aconteceu, nesta história o teu coração não passava do punho do teu pai e o meu, a cara da tua mãe.
Sonhavas viver rápido para morrer depressa, nunca fez sentido. Escuta, quando a morte vem tu tens 6 anos. A morte quando vem, vem lenta, a morte quando vem é um murro, em direção à cara da tua mãe.
31.
Somos tão estúpidos que achamos que tudo pode ser um sinal. Nunca é. Como no dia em que me deixaste e todos os dias que se seguiram, quando a campainha tocava imaginava-te de volta, eras tu, só podias ser tu. Não sei se alguma vez te disse, mas a única diferença significativa entre um não e um talvez é a esperança. Um talvez é um não disfarçado.
Ansiei em diversas circunstâncias ser eu a mulher vestida de branco na tua história, aquela que te olhava subtilmente até desvanecer, mas que te acudia sempre. Nunca o fui e tudo o que fiz foi segurar-te na mão silenciosamente, como quem diz que te perdoou hoje e sempre. Depreendes nesse instante porque nunca me visto de branco, enxergas no fundo de ti que divindade nunca quis ter nada a ver comigo. A Aurora diz que os demónios se escondem por detrás dos santos. Que se Deus existisse já teria aparecido a esta hora. Que todas as igrejas o têm crucificado porque o querem preso, que a igreja é uma mentira. Bom seria retratá-lo por todo o bem que fez, diz ela e recordo-me que só guardei junto a mim memórias da minha avó a sorrir por isso a Aurora só pode estar certa. Que isto é o purgatório e que ninguém se torna um Deus sem sofrer o pior que há para sofrer da vida. Às vezes acredito nela quando me fixa e jura por tudo que já esteve frente a frente o diabo. Já me esbarrei com ele também e por isso sei com exatidão do que ela fala. O diabo usa o rosto da primeira pessoa que amaste e que nunca te quis. Trata-te como um presente que não tem intenção de manter e não te fixa os olhos. Usa desmedidamente a voz da primeira pessoa que te devolveu ao pó, até aparecer alguém pior e possuir outro corpo. Não sei se alguma vez te sentiste assim, amaldiçoado por seres a coisa mais abençoada em cada lugar. Não faças caso, não sei do que falo. A frase anterior é falsa. Fictícia como aquela flor que regámos durante meses até que percebemos que existem algumas coisas que simplesmente não brotam por estes lados. Confia, sei do que falo uma vez que também eu já me senti desprezível o suficiente para odiar a pessoa que me segurava enquanto chorava. O que quero dizer com isto é que as minhas lágrimas que caíram no teu colo nem Deus as viu e se viu virou a cara e benzeu-se 3 vezes.
Quando desmembramos o nós, imaginei-te durante meses a propagar por aí a história da rapariga que sonhava ser feliz e era miserável. Que bom é agora saber que nunca fui a rapariga da tua narrativa. Mas o que é o coração se não uma coisa morta e até o meu nome se transformou em nada mais do que um fantasma que enterraste no quintal.
30.
Setembro vai ser sempre assim daqui em diante, pressagiei-o naquele dia e raramente me engano. Devias ver os meus sonhos, nem sabia que se conseguia sofrer assim enquanto se dorme. Setembro é assim, o único mês traiçoeiro e perverso, o único que leva o que não é dele para nunca mais devolver e assim que se arrepende chora connosco. O único que se esconde por detrás do sol e traz chuva.
Ainda penso tanto em ti. Aliás de todas as vezes que me aleijo é em ti que penso como se curasses. Que bom, foi sempre este o teu superpoder, não é giro ver como algumas coisas nunca mudam? Numa conversa de ocasião partilho que consigo sempre ouvir com exatidão vezes e vezes sem conta a frase que costumavas repetir sempre que algo te magoava, mas não conto que é a única coisa que digo a mim própria para ultrapassar tudo o que dói. Percebe prontamente do que me refiro e rimos em consonância durante uns bons minutos, rimos durante o que parecem anos quando na realidade sabemos que nos proporcionaste décadas de alegria. Assim que se instala o silêncio, a minha boca torna-se amarga e perde o gosto do que quer que tenha sido a última coisa que tenha provado. Talvez da alegria. É isto que acontece cada vez que nos lembramos de ti e sempre que rio lembro-me e repito para mim mesma, baixinho, quase que em segredo, que isto não é felicidade, é conformismo. A verdadeira alegria era ver o sorriso que trazias sempre que me abrias a porta. Sei bem que se as saudades ressuscitassem, amanhã, por volta do meio-dia, estaríamos todos vivos, sentados em volta da mesa mais comprida que tinhas lá em casa. Uns quantos quilómetros não mudam a realidade de tudo que aconteceu e nem o oceano nos separa, só terra, mais terra.
Deste lado descobri tanto, com a Ana que nunca conheci o inverno e mesmo assim nada isola o ruído que faço porque toda a minha vida foi um ranger de dentes e um tiritar de queixo. Que todos nós devemos algo a alguém, não importa a quantidade de vezes que tento ignorar esta realidade para poder ser livre e voar por aí. Que, por vezes, somos tão livres que só queremos algo que nos prenda. Que a maldição de viver uma vida assim é ver que todas as amarras que usamos para nos prendermos se partem. Com a minha senhoria aprendi a decorar a ferida, a enfeitar os buracos na parede. Que uma mulher insubordinada e barulhenta nem é mulher, é bruxa. Que as almas tem milhares de anos: "Já estiveste aqui antes, sabias?" o que quer dizer que talvez no passado tenhamos caminhado lado a lado durante mais tempo, que bom. Quando nos voltarmos a ver vais sentir que nunca te soltei daquele nosso último abraço, vamos olhar-nos nos olhos outra vez e perceber finalmente que todos os meus abraços são uma despedida. Confia em mim que tenho passado a vida toda a ver de perto coisas impossíveis a acontecer. Confessou-me que a morte não é mais do que uma mutação que a alma faz de carne e fê-lo com uma leveza que deixa transparecer que nunca te levou flores à campa e se sentou a chorar. "É importante dizer: Desintegro o medo. Desintegro é uma palavra muito importante... com o tempo vais ver". Assimilei na sua presença que nunca se devem revelar as nossas verdadeiras intenções, é indispensável deixar as pessoas a dançar no nosso teatro de marionetas até nos implorarem por uma mão quando estivemos a comandá-las com as duas.
Nem sei se te vais fiar de mim, mas nem sinto falta da luz, só da música que tocava de fundo por cima da chuva. Até da chuva sinto saudades, maldito inverno que nunca mais vem, abençoado sol que não foge. Sempre confessei que nunca soube encarar bem a taciturnidade e por isso da penúltima vez que me apaixonei, em vez do silêncio, o amor berrava-me aos ouvidos. Questiono-me se te imaginas a desvanecer da minha mente como estranho agora o aparecimento da luz. Existem tantas coisas que desconheço e quero conhecê-las para te poder contar tudo sobre elas.
Lembro-me de há uns anos perguntar ao pai se acreditava em Deus e esperar pacientemente por uma boa resposta de olhos postos no chão. Tudo o que recebia de volta era pouco e com o tempo tornou-se muito. Penso que é isto que acontece às coisas pequenas quando lhes mostramos a luz, como sementes que brotam. Enquanto ele sacudia os ombros e retorquia simplesmente enquanto dobrava a folha do jornal, como se todos os problemas do mundo acontecessem lá fora: "Às vezes nem sei se acredito no que vejo, vai se lá saber do resto". E eu também, mas olha que tento muito. Gosto de acreditar no que quer que seja porque gosto de andar feliz, tu também acreditavas muito por isso só pode ser bom.
- Porque andes por onde andares continuas perto
29.
E se é um sinal que procuras está aqui, entrou sorrateiramente e sentou-se ao fundo. Este é para ti, já que todos se questionam e só tu sabes retorquir que a minha pele descola, que comigo as portas não trancam, que as amarras me soltam. E sabe-lo porque assististe em primeira mão a tudo isto, como um fenómeno que só tu pudeste segurar nos braços por uns instantes, antes que se tornasse maior que tu. A franqueza com que vivo faz sangrarem-te os ouvidos antes de sequer ser capaz de afiar a minha língua. Enxergo que as minhas palavras correm descalças desenfreadamente, desculpa se alguma vez te pisaram nos calcanhares, não faço por mal, nunca vejo bem onde ponho os pés.
Descobri há pouco que o truque para malas de viagens é preencher os espaços vazios, olhando para trás, de certeza que foste tu quem mo ensinou. A mala pesava mais do que conseguia levantar e acabei por pagar mais pelo excesso de peso, por isso talvez os espaços vazios nos custem mais.
Digo-te que faz hoje um ano e permaneceremos em silêncio, lado a lado, com a minha cabeça pousada no teu ombro enquanto suspiras. Nada disto é real, estou a uns quantos quilómetros, mas do outro lado da fronteira, as minhas horas nunca se encontram com as tuas, estou sempre um passo à frente, o que me faz crer que mesmo longe nada mudou. Aqui são as horas que estão permanentemente desacertadas e eu estou sempre correta. Quase que perco o autocarro todos os dias, mas apanho-o sempre. Mas amanhã trabalhas, respondo-te breve que tudo se vai ajeitar e sorris com uma expressão que reflete que, por enquanto, ainda não consegues bem precisar o que está torto. E na minha fantasia tudo isto não passa de um quadro que penduramos torto na parede, fora de alcance e imagino o dia em que correrei a teu lado incansável para o ajeitarmos. Das nossas últimas chamadas subsiste apenas o barulho que implementa o silêncio que segue depois de me perguntares se estou bem, como se conseguisse ouvir o vento que passa agora pelo que antigamente era um campo de guerra. Escuta, a guerra acabou e fomos todos para casa tratar das lesões. Mesmo assim, em dias como este, interrogo-me se o som do meu riso não será nada mais do que como uma arma que te baleia agora o peito. Será que te dói eu conseguir ser feliz longe? Desculpa, nunca te quis afligir. Prevemos isto tudo em conjunto, ia para longe, fazia do mar metáfora e soltava uma gargalhada quando me perguntavas, por telemóvel, se via o copo meio cheio ou meio vazio, rias também, sabias sempre vi tudo a transbordar. As faltas também transbordam, entendes do que falo? Deus queira que não. E por falar em Deus por onde achas que anda ele nos dias de hoje?
Desculpa, começo sempre a deambular, mas escuta, se é do sangue que vem a tinta que usam para manchar a parede com a palavra "saudade", sabê-lo-emos, entretanto. No secundário, a minha professora de inglês disse-me uma vez que me conseguia enxergar como a líder de uma revolução e que maravilhoso é alguém perceber que existe algo em ti que nunca se rende, que ainda queres lutar depois de toda a gente desistir e ir para casa. Talvez por isso com o desenrolar dos anos me sintas como areia por entre os dedos, sintas que tudo isto não passa de uma tentativa de sabotar a minha própria felicidade, que chega sempre como um buffet ao pequeno-almoço. Juro que não é o caso, posso contar-te um segredo? No começo dos tempos o meu coração tinha problemas em adormecer, olhava para fora, mas só conseguia ver a prisão que era viver dentro deste corpo até que decidi soltá-lo. Agora que sabe que é livre não consegue mais viver quieto, acorda-me sobressaltada durante a noite e quando abro os olhos, está ao canto a calçar os sapatos. Sei o que estás a pensar, mas nem sempre calça os sapatos para escapulir-se desvairado por aí, existem madrugadas em que todas as sinfonias se reúnem e dançamos juntos, em vez de dormir. E é nestes encontros que percebemos que a liberdade é o melhor presente. Revejo que é isto que faço perpetuadamente: desejar estar longe para cada vez que retorno, depreender que quero estar perto, cada vez mais perto.
- Hoje acordei cedo, escrevi-te todo um poema e voltei a dormir, há coisas que nunca mudam.
28.
A minha mãe não estava preparada, penso que a maior parte das mães nunca está. Mas uma criança não pode fugir, percebes? Vive e tem o que lhe dás e se decidires que não queres dar mais, ela que se vire. Ter uma criança pode ser destruir-lhe a vida, entendes? É preciso um curso intensivo para gostar de alguém que se apresenta como um tornado e agora que durmo com o peso desta realidade não a repreendo mais por só ter apanhado o jeito à meia dúzia de anos. Que aborrecido, falamos todos em carências, no que falta, como num corpo amputado no qual só consigo olhar o que não está, mas se te fizer sentir melhor posso oferecer-te um banquete com palavras. Ouvi dizer que tenho jeito para escrever coisas. Tenho uma tendência enorme para entrar sempre do lado mau, escolhê-lo. Olha foi quase como ontem, no teatro, quando te apoquentei por teres escolhido os lugares da ponta. Não me agradam os lugares do meio, dizias, ter de atravessar toda a gente e criar um tumulto. E eu só consegui retorquir que ou criamos o pandemónio ou o pandemónio se concebe à nossa volta, sacudiste os ombros apenas, como se não tivesses alcançado naquele momento a causa por detrás de tudo isto.
Mas quem te deu o vento não te confidenciou que alimenta o fogo, pois não? Porque andas tu por estas bandas? Só queremos ser compreendidos, todos nós, não é? É por isso que nos juntamos em cafés e em festas, é para isso que vamos, para conseguir escutar a mesma música. O conforto de estar e ao mesmo tempo nunca estar sozinho. Não sei se alguma vez te contei, mas quando era pequena brincava tanto sozinha que para existir alguém mais me imaginava como duas pessoas, como se existisse outra igual a mim, invisível, fora deste corpo, como se pudesse escapar. Toda a gente cria outras pessoas e o meu único desejo sempre foi criar-me a mim. Não a vejo há anos. Que tola, na altura não sabia que soltar-me era deixar-me fugir.
Talvez por querer tanto ser entendida me tente explicar tão bem, por isso todas as minhas explicações tenham uma tese digna de um mestrado, uma argumentação afiada, provas visuais, exemplos e citações. Sempre que me desvendo para ti, é como se movesse mares e sou, de repente, toda a água que se moveu até ali para nos separar, toda a água dos mares está agora diante de nós porque a convoquei. Acredito mesmo que nem me oiças a gritar por cima de todo o ruído que faço.
Lembras-te da primeira vez em que me perguntaste o que quero ser? "Daqui a uns anos, quando todos nós tivermos de ser alguém, quando nos obrigarem a vestir camisas de cetim e calçar sapatos que não nos encaixam." A resposta é sempre a mesma, já sabes: atender telefones e servir cafés. Mas interrogas-me tantas vezes que parece que não serve para ti, não te contentas, pensas que te minto enquanto guardo a verdade para mim. Dá-me permissão para elaborar, posso dizer tudo o que sei que queres ouvir. Acredita tenho também esse discurso preparado para aquelas pessoas que quando me olham nos olhos não me querem a mim, mas à mentira. Sim, é verdade, também trago a mentira no corpo e ficarias surpreendido com o espetáculo que fazemos quando dançamos juntas. A verdade é de tudo o que posso ser, preferia ser compreendida, alguém que me agarre em vez de me fazer os pensos não serve. É quase como aqueles sapatos dos quais me falaste há pouco.
Talvez daqui a uns meses te escreva uma carta porque sejamos sinceros, já ninguém escreve cartas e eu aproveito até o baço dos vidros para compor. Agrada-te ler? Ah meu Deus, como detesto ler tudo o que não concebi e percebo de perto que sou o primeiro nome próprio como definição da palavra "egoísta" no dicionário. No dicionário online, quero dizer, hoje em dia inventa-se tudo e antes de ter nascido de certeza que haviam pessoas piores que eu. A minha mãe sempre me impôs tanta pressão para aprazerar toda a gente, que não eu, que me revoltei contra tudo o que agradar significa e desde então só tenho feito o oposto. Como quando ontem o meu melhor amigo me disse que só lhe ligo ao fim de semana: "Quando digo ligar não quero dizer telemóveis, Laura." Desculpa tenho andado tão ocupada comigo, às vezes sinto que tomar conta de mim é como passar o dia a correr atrás de uma criança de 5 anos que não consegue estar quieta. Passo o dia a perseguir-me e ao fim do dia estou exausta. Existe tanto que me separa dos outros, coisas que criei com a minha solidão. Já te falei dela? Damo-nos tão bem que nem gosto de lhe chamar assim. Será assim tão mau querer estar sozinha? Como ontem quando te falei sobre o meu dia, me recostei na cadeira e ri enquanto suspirei: "Divirto-me tanto comigo própria." Mas nem tudo é diversão, tenho tanto que arrumar por dentro, só de poemas tenho uns quantos espalhados por aí e primeiro quero encontrá-los, saber porquê e onde os escondi. Às vezes escondo a verdade porque me magoa, e quando digo "escondo-a" quero dizer de mim própria. Já alguma vez soubeste a verdade cedo demais? Achas que é uma vitória ou uma derrota? Odeio não estar armada. Disse armada? Que confusão, queria dizer preparada, claro. Se quiseres posso ligar-te mais vezes. És tu que empurras a minha solidão para longe por isso quando passo muito tempo com ela é normal não te ligar. Sei lá, vocês nunca simpatizaram muito um com o outro por te deixar tantas vezes por ela, claro que te prefiro a ti, mas conheci-a primeiro. E isto não significa nada, tenho plena noção que ela só me deu a mão depois de ver que seguravas a minha com certeza de que o mundo ia acabar e me ias perder um dia para sempre, como se perder-me fosse perder o ar. Mesmo assim sempre tive mais talento para o drama que tu. Desculpa aquela vez em que deixei de te falar durante 6 meses porque te contei qual seria a pior coisa que me podias dizer e sem querer fugiu da tua boca. És tão desbocado que acredito que seja o teu segredo mais bem guardado desde aquele dia. Existem tantas coisas piores que me podes dizer agora e nunca as dizes, obrigada. Desculpa e obrigada.
Já reparaste que criam limites de palavras para tudo e mesmo assim não me conseguem amordaçar? A minha mãe diz sempre que acho que faço tudo melhor que ninguém, mas é mentira, por exemplo ainda não sei cozinhar. Aprendi recentemente a colocar vírgulas e até esse momento, improvisava. Como se se pudesse improvisar a língua portuguesa. Foram as vírgulas que me ensinaram a dar valor as pausas, ao que nos separa dos outros e porquê.
Tive um sonho no qual precisavas de ajuda e num momento de pura concentração, com o indicador e uma cara sisuda começaste a contar apoios enquanto rodavas sobre os teus próprios pés, quando bateste com os olhos em mim e disseste "três", só consegui retorquir: Eu não, não contes comigo.
- "Éramos cinco. Decidimos separar-nos em grupos de quatro. Por qualquer razão fiquei sozinho."
27.
Sussurrava para mim própria que só um ladrão se aproveitaria de um incapaz para lhe tirar o que quer que fosse, perguntava baixinho: "Amor, és tu?"
Mas em segredo sempre soube que a tristeza nunca quis ter nada comigo e cá estás tu por fim para o testificar. A memória continua vívida e em chamas na minha cabeça, do dia em que a minha mãe me decidiu revelar a profecia que gira em torno de mulheres como nós. De como toda a sala se tornou silenciosa quando partilhou, como que num desabafo, que o problema de ser uma mulher forte é que ninguém sabe bem o que fazer connosco. E tu sabia-lo muito antes de mim, talvez por isso me olhes de forma diferente de qualquer outra pessoa que já me tentou desvendar. Não penses que não reparo nesse olhar incansável enquanto tentas apanhar um vislumbre de todas as saídas possíveis sempre que chegamos a algum lugar, tudo porque conjeturaste no fundo de ti que todas as portas se abrem para me deixar fugir. Como se tudo, e ao mesmo tempo nada, me tentasse reter. Por vezes gosto de imaginar que seguro a tua mão e murmuro que se todas as portas estão trancadas, és tu quem me solta. Mas para ti estou sempre com um pé fora da porta e um adeus escondido debaixo da língua, ensaiado durante meses em frente ao espelho. Dou-te a minha palavra que desta vez é diferente, não sorrio e sei que quando partir não vou sentir que ganhei. Consigo até ouvir-me no futuro, apesar de toda a distância e tempo, algures a chorar, algures onde não falam a nossa língua e onde pronunciam o teu nome de forma errónea. Ah, perder-te já é perder tudo. Sempre soube que ser adorada por ti seria como ser mergulhada em glória depois de anos de derrota, como se o chão numa decisão precipitada se tornasse instável e dançasse comigo.
Alcanças no mais profundo do meu olhar que a tua história estará segura comigo para onde que que vá, certo de que se morresses neste preciso momento as mais lindas palavras estariam estampadas na tua lápide, tudo isto porque existo e porque te escutei atentamente quando tudo em mim é desatento. Porque sei toda a verdade e não hesitaria em momento algum espalhar a mentira, se só ela te aconchegasse. Sei que no fundo a única coisa que sempre quis foi a tua felicidade, por onde quer que andasses.
Talvez um dia passe a vontade de ser o teu local de deleite, até lá fica a promessa de ser gentil até não conseguirmos ser mais, até decidirmos mostrar ao outro que as garras que possuímos nunca foram feitas para pentear cabelos, enquanto o outro repousa no nosso colo. Mas daqui em diante, até que esse dia maldito não chegue, pretendo tratar-te como se estivesses em vias de extinção. Todos nós vamos desaparecer em breve e que errado parece viver num mundo sem ti. Que absurdo saber que ainda há tempo e mesmo assim pedir mais, pedir sempre mais.
- "Desculpa não gostar de ti há mais tempo. Para compensar prometo gostar de ti para sempre."
26.
Sabes que gosto demasiado de mim. Uma mulher que gosta demasiado dela própria nunca mais gosta de ninguém, não consegue gostar de mais ninguém. Amar o outro é um luxo, para quem tem tempo de se desprover de armas e olhar o azul no céu. Sabes que eu estou quase sempre em guerra, que detesto o conformismo e que quando me acalmo pressinto ao longe a tempestade que se avizinha. Não pode haver calma no mundo se a injustiça sobra. Recordo-me de quando me perguntaste se alguma vez pensei em comprar uma arma e mordi a língua para não te responder que sou uma. Que tudo o que uso para me defender se levanta comigo pela manhã.
Conjeturas que a minha história se escreve sozinha enquanto durmo, como se fosse a sua própria tragédia correr por aí, desgovernada. Atestas desde que me contemplaste em plena luz do dia que as melhores tragédias se escrevem sozinhas. E eu já nem desacolho a tragédia se foi ela que me trouxe até ti. Mas, por enquanto, tudo encaixa na perfeição e usufruirmos das dádivas do início. Mas o princípio está tão distante, somos feitos de recomeços. Já nos cruzamos tantas vezes que começo a confundir a realidade com tudo o que estou certa de que vivemos. Sempre que tens um déjà vu, esboças um sorriso de orelha a orelha, como se no passado nos tivesses sonhado aqui e como que por magia tivéssemos decidido aparecer. Não creio. Em vez disso acredito piamente que já nos cruzámos milhares de vezes, noutras histórias, há milhares de anos, que o coração tem memória própria. De certeza que já te chorei noutras vidas, será que desta vez te perco de novo? Será desta vez que te perco de vez?
Impremeditadamente desconstruo sempre todas as definições de amor que esbarram contra mim, talvez seja melhor estares preparado. Mas entende, desconstruir o amor não é vencê-lo, não desprovi da sua forma real e se prestares atenção ele continua aqui. Da próxima vez que nos abraçarmos planeio agarrar-te como se te prendesse, como se visse que no futuro te vão levar de mim. Desculpa se ainda não me sinto pronta para te soltar. É só que às vezes tenho tanta fome que é como se o meu estômago organizasse uma rebelião contra ele próprio, como se decidisse devorar as suas próprias entranhas, como se nada disto doesse. O que quero dizer é que a urgência não me providência tempo para doer e que vivo com urgência. Que no final vou desmistificar tudo isto e se quiseres posso enviar-to por e-mail.
- Sabias que a palavra "sempre" não tem sinónimo?
25.
Tento não chorar quando me confessa que tudo o que escrevo faz mossa de uma forma ou outra. Tento não chorar, mas no fundo de mim concluo finalmente de que tudo o que me orgulho, fere. Pego agora numa caneta como que num machado, como se o peso me derrubasse o braço e tudo em mim treme enquanto me questiono que parte vou cortar de seguida. O que é absurdo, como se me esquecesse por instantes que escrever é por dentro, quieta. Escrevo e penso que gostarias talvez de ler isto se tivesses oportunidade. A poesia não é nada mais do que sofrer quieta com mãos inquietas. Pressagiaste que seria tudo o que sou, que não passa de um aglomerado de provérbios, poemas e de joelhos ensanguentados. A verdade é que só vivo para poder escrever, se ousasse contar histórias que não as minhas não viveria e aí escreveria para viver.
Vejo poemas em todo o lado, deslizam como um sopro de um lado para o outro do autocarro mais até do que o próprio vento. Certamente que poderia compor um livro juntando todas as frases de autocarro que reproduzi na minha mente durante dias, que se grudaram na mente. Talvez todas elas se escondam como pó acumulado junto do tecido crespo, debaixo dos bancos e por isso tudo esteja escrito. Talvez um dia alguém as limpe e só sobrem incógnitas, palavras baralhadas, desprovidas de qualquer sentido que juntas colidem umas contra as outras.
Encontram-se no autocarro, aparentam ter mais de 60 anos, quase que atropeladas pela vida. Depois de um diálogo extenso, a alto e bom som, ouve-se um longo suspirar seguido de um resmungar entre os dentes, como que uma tentativa de justificar toda a distância de tempo e espaço que as separa. "Pois é, a vida afasta-nos." Concordo silenciosamente e de imediato, depois sorrio enquanto espreito pela janela, como se sorrisse para a vida com fé que algures ela sorria de volta. Quando partilho tudo isto com a minha mãe, mais tarde, ela solta uma gargalhada e proclama: "Absurdo, a vida não nos afasta. Se olhares com atenção estamos todos aqui porque nos chamámos até aqui. Porque nos apressámos, reinventámos e estendemos o tempo. Atrasamos os relógios e fechamos os olhos, fingimos que não vimos. Dormimos menos tempo e acordamos num novo dia e o nosso sorriso ofuscou o peso das olheiras." E tal como ela e o jantar de qualquer festividade, o meu único desejo é ser uma desculpa para juntar as pessoas e fazê-las sorrir. Mas, por enquanto não sei nada disto, continuo no autocarro e enquanto olho pela janela desejo um dia de atingir a simplicidade dos que se sentam sós num banco de jardim.
Não obstante é imensurável a gratidão com que me deito todas as noites por de todas as vidas que me podiam ter calhado esta ser a minha. Falam de sorte no amor, azar no jogo, que tolos. Sorte foi ter nascido com tudo isto aqui, perto. Ah, nos últimos tempos todas as minhas metáforas são sobre dançar. Sobre semear e colher o que planto. Talvez na minha imaginação seja feliz numa casa humilde a norte daqui. Talvez todos sejamos.
- Absurdos
24.
Sempre disseste que vivo com tanta pressa que parece que estou constantemente a fazer as malas para ir morrer cedo. Faço tudo para me provar pronta, caso aconteça.
Faço um piercing com a minha amiga e no caminho até casa ela jura que não ouviu um único som a sair da minha boca. Talvez quisesse um guincho, sei lá, algum som de agonia, como se a dor viesse de surpresa numa agulha que serve para me atravessar o corpo. Olha-me e procura aprovação. Não respondo e apenas sorrio. Não lhe conto que sempre sofri para dentro.
Tal como no dia em que me confidenciaste que acreditas piamente que os amantes são assim, como nós, beijam-se e é como se se amassem. Fiz-me de desentendida, mas a tua voz procurou criar em mim ninho, como um pássaro em terreno desconhecido e piou quase como que um sussurro: "Às vezes quando me beijas, parece que me amas." Desviei o olhar, sempre tive o cuidado de não olhar o amor nos olhos e respondi baixo: "Sabes que é mentira."
Mesmo assim, continuo a entrar em sentido contrário na tua rua e sempre que estou bêbada procuro-te. Ou sempre que te procuro, bebo-te? Como se te continuasse a tocar na ferida, apenas para me certificar se o sangue está fresco.
- "Encostar na minha a tua ferida"
23.
Tal como um carro que não anda sem combustível, deparo-me prontamente com a realidade de que sou movida por amor. Pondero deixar de te escrever, tudo para me obliterar de que foste o combustível errado.
Nunca entendi o amor, sempre confundi a fumaça da combustão com o fumo que nos turva a visão, por o amor ser cego, dai-me ter agarrado a ti com mais força.
Ah se fosse agora.... nunca me teria deixado estourar nos teus braços, mas tudo isto aconteceu enquanto ao fundo parecia tocar uma balada que me acalmava, profetizava quase como num sussurro que lá porque o fim está sempre ao virar da esquina, não quer dizer que queira comparecer na nossa casa, que nos queira visitar.
Nas noites onde a tristeza se deita a meu lado, como se viesse para ficar, faço das tuas palavras recosto e ao fechar os olhos consigo relembrar-me com exatidão das palavras que sussurraste, quando juraste estar convicto de que foram todas as lágrimas que deitei deram vida às rosas que trago no peito.
- Não escrevo mais sobre amor. (Só sobre ti, que já não o és.)
22.
1 - Foi contigo que aprendi que quando acordo no domingo de manhã deixei a pessoa que fui no sábado à noite a morrer na calçada. Existe mais simplicidade em criar um fim do que um começo e a minha boca só queria provar a tua. Deste-me tudo para que te pudesse encontrar e nunca te procurei, convicta de que era o fim. Aprendi a ser assim sozinha, embora por vezes culpe os outros. És a prova viva de que desde o início sempre soube que o amor não cura.
2 - Ainda não sei bem o que queria de ti, porventura o que quero sempre, um dessentido de ser gente. Semanas depois confessaste-me que no dia em que me conheceste escondeste a timidez no bolso e correste até ao bar mais próximo para comprar uma água gelada, tudo para teres uma desculpa para me tocares na cara. Na altura tudo era poesia, mas quando a tua mão tocou na minha percebi o síndrome da página em branco. Dessa noite ficou o barulho da multidão que me cercava e a decisão consciente de me deitar no chão, a olhar as estrelas. Ainda hoje é a primeira memória que me ocorre quando penso num momento em que fui completamente feliz. Nem notei a tua presença, era apenas eu e a noite.
3 -Tudo aconteceu como se tivesses chegado atrasado à sala de cinema, apressado e bagunçado, deparaste-te com todos os bons lugares ocupados mesmo assim teimaste em ficar, nesta sala de cinema que é a minha vida. Sinto que desprezei os teus sentimentos durante anos, que os pisava e calcava até às profundezas. Que incomodo sempre foi tudo o que sentias.
4 - O meu corpo sentia desagrado ao teu redor e contorcia-se como se se revoltasse contra ele próprio por estar ali. O verde dos teus olhos nunca me trouxe esperança, em vez disso deixava-me sozinha num labirinto no qual nunca quis entrar. Aceitei todas as mentiras que me contavas, porque a verdade sempre me sobrecarregou.
5 - Tomaste conta de mim durante anos ou deveria dizer tomou? Este amor dos infernos. Encostaste-te a mim como se fosse eu búzio e juravas conseguir ouvir o mar. Melhor dizendo, foste tu que me demonstraste a beleza e a solidão de tudo o que trago cá dentro, talvez por isso toda eu seja mar, e tu, maresia.
6 - Caminhamos juntos durante meses, mesmo assim foste o amor mais incorrespondido que alguma vez tive. O teu coração rejeitava o meu e quando saíamos deixava-o em cima da cómoda para te encontrar. Jogámos este jogo durante meses e quando profetizei o fim, foi-me aconselhado que deitasse as cartas na mesa, que me rendesse para ficar contigo. Que fizesse das tripas coração. Recusei, continuo sem saber se algum de nós ganhou, no fundo sempre soube que o amor nunca ganha. Sei que só sorria e nunca te o disse de volta, mas amei-te tanto. Escrevo-te mesmo enquanto durmo, todas as minhas metáforas ecoam e só me oiço a falar comigo mesma.
7 - Passei o tempo a chamar-te pelo nome errado e nada em ti se demoveu. Meses depois decidi voltar a procurar-te para me obliterar de mim. Tenho plena noção de que neste verão fiz tudo menos sentir o que quer que fosse. A dor é sempre mais fácil de digerir misturada com álcool. Não estive sóbria em nenhuma as nossas conversas por isso tudo o que me confidenciaste morreu em ti. Quando decidi conhecer-te, eu e não o álcool, fiz-te mil e uma perguntas e pelo que contas o desenlace foi sempre o mesmo, um déjà-vu, dizias. Testemunhavas: "Foi exatamente o que disseste ontem." e sorrias por deparares que sou verdade a toda a hora. Ainda não consigo deixar de sorrir sarcasticamente quando me recordo que escolheram o mesmo dia para nascer.
8 - Tudo o que me lembro desta noite visita-me em flashes. Tentei redigir-te algo mais, mas tudo se resume a uma noite nos finais de maio, música alta, uma garrafa inteira de gin e o cheiro nauseabundo a traição.
9 - Havia pouco tempo e mesmo antes, quando existiu, não chegava. Continuo convencida que naquele dia me forcei na tua mala e embarquei contigo. Sinto-te como uma cidade, sempre que te percorro na esperança de te conhecer melhor é fácil discriminar que precisaria de uma vida eterna para te desvendar. Espero um dia ganhar coragem para me deslocar para perto de ti.
10 - Nunca foi minha intenção maltratar-te, mas o meu coração dançava sozinho dentro de mim com sapatos mais pesados do que conseguia levantar. Não creio que exista nada no meu interior que consiga corresponder a tudo o que me pintas para ser. Tudo porque apanhaste um vislumbre do melhor que podia ser e sempre me trataste como se fosse tudo o que conseguias enxergar. Ainda hoje tenho pesadelos onde sem querer te abro ao meio na tentativa de descobrir se as tuas entranhas também pulsam.
11 - Apressei-me até à estação, comprei o bilhete e corri desesperadamente para o comboio errado. Apressamos tudo e então em meses passaram-se anos, conseguia jurar que já te havia visto no meu futuro, a ser um fragmento do passado. De tudo o que fomos só relembro o tempo que passei a desenhar no baço dos vidros que criávamos e de um aperto no peito, como se me engasgasses a alma.
12 - Foi contigo que percebi que consigo mastigar o meu próprio coração ao pequeno almoço e ainda te oferecer dinheiro para o táxi de volta a casa. Sorrias maliciosamente como se fosses gasolina e ganhei instantaneamente uma vontade urgente de te ensinar cedo que não se brinca com o fogo. Passou um mês e continuas a buscar-me, como se não conseguisses descortinar que tudo o que ficou da minha ausência foi um trilho de cinzas.
13 - Sempre escolheste a tua solidão em vez de mim, como se não competisse com mais ninguém que não tu. E era verdade, quando espreitava para dentro de ti só lá estávamos os dois. Só comecei a ter medo de partilhar ar contigo quando as tuas mãos me agarraram pelo pescoço.
- Bagagem emocional
21.
Ah, gostei-te tanto. Tanto que a minha amiga ainda se recorda de como corei durante todo o caminho para casa, como se tivesses saído de um conto de fadas.
Consigo imaginar-te, de todas as vezes, recostado no conforto da tua cadeira, a olhar por mim à distância, enquanto me deixas cometer todos os erros que me fazem salivar durante a noite e sempre que volto para ti tens o pequeno-almoço pronto e o sorriso mais caloroso que já vi. Preparo-me para responder a todas as tuas dúvidas, justificações sabidas na ponta da língua para desculpar o facto de o meu coração se abstrair e se lançar por aí. Nunca me interrogas, o que me faz sentir que passo a vida a preparar-me para ti quando me preferes imprevisível. Sabias que o que quer que vivesse no meu peito batia livre como um pássaro e em vez de lhe preparares armadilhas, trouxeste-lhe tudo o que precisava para ser feliz e esperaste que te escolhesse a ti. Sabias que tudo o que eu alguma vez quis foi ser feliz. Encontraste-te por detrás de todos os poemas que alguma vez te escrevi e por isso todas as minhas palavras encontram conforto em ti. Como na noite em que me disseste que não te importavas que existissem outros porque sabes que quando durmo, os meus olhos se fecham contigo por dentro.
Talvez devesse ter sido mais meiga contigo, mais branda. Mas a minha mãe não me ensinou a ser gentil, em vez disso ensinou-me a cuspir fogo no inverno para me manter quente. Ensinou-me desconfiança, a trazer o meu próprio veneno comigo, como um escorpião. Contou-me que queremos ser todos diferentes, por isso é que somos todos iguais. Ensinou-me a preparar-me no dia anterior. Habilitou-me de forma que eu conseguisse antecipar o tiro e o local certo para o receber, a levar tudo a peito e para o peito. Tudo o que aprendi sobre gentileza foi-me ensinado por mim própria no meio de uma tempestade.
Já não sei onde acabas tu e onde começo eu. Agora quando me magoas não és tu, sou eu. Quando me magoas fui eu que bati com o meu mindinho na esquina de um móvel ou que me queimei a tirar o jantar do forno. O que quer dizer que perdoo sempre porque sei que foi sem intenção. Sei que tudo o que desejo para mim, tu desejas para mim em dobro. Sonhas em poder desdobrar-te para me dar tudo o que alguma vez ansiei e não consigo deixar de sorrir quando me fazes lembrar o meu pai por tudo isto. Sei que não falamos no teu pai porque te magoa e quando te sinto a chorar passo os dias a tremer.
A nossa diferença mais significativa é que nunca rimos ao mesmo tempo da mesma piada e nunca fazemos as mesmas perguntas, em contrapartida arranjamos sempre forma de fugir, com um talento quase inato, à questão. E é isso que sempre quis, poder fugir, contigo.
- Não consigo deixar de sentir que nasceste para completar as minhas frases
20.
Na nossa primeira conversa debatemos até chegarmos a um acordo quanto ao nome que iriamos dar aos nossos filhos, não consegui evitar, mas rir, sempre adorei idealizar irrealidades, absurdismos. Naquela altura tudo o que sabia era o teu primeiro nome e nem isso encaixava bem na minha boca. Depois de todo este tempo, o teu nome continua a ser a única certeza sobre ti que guardo comigo, talvez me tenhas mentido este tempo todo. Às vezes gostava de ser mais como tu, dói enfrentar a realidade de ser eu o tempo todo.
Não vou negar, contigo passei o tempo à procura de uma oportunidade para correr em direção à porta, uma distração tua, um descuido, tornaste-me mais pequena. Quando me soltaste corri o mais rápido que pude. Nunca falámos sobre isto, a nossa última conversa em nada se pareceu com um adeus, mas os nossos corpos disseram-no, sabiam bem antes de nós. Não consigo agradecer-te o suficiente por não me teres tentado prender de novo, quando vamos ao encontro do desconhecido a nossa espinha dorsal encontra-se incerta e fragilizada, a tua mentira podia facilmente fazer-me refém outra vez e eu sempre quis ser livre. Nunca me deste espaço para ser eu própria, por isso tentei encontrar conforto em ti, como um parasita. Tentei ocupar este corpo que não era meu e desgostei de todos os momentos em que me encontrava reprimida e asfixiada. Nada disto fez mossa, por isso agora juro a pés juntos que o amor só dói à primeira.
Tentei idealizar, imaginar o quão felizes podíamos ter sido e tudo perdeu o significado, tranquei-me no meu próprio labirinto, na minha quimera e chorei de desgosto. Apercebi-me que quis que saísses da minha vida desde o dia em que apareceste, mas antes ofereci-te o poema mais bonito que alguma vez escrevi e depreendo agora que não coube nele nem uma verdade. Não fiz nenhuma menção aos teus olhos pardos nem ao facto de colocares sempre a mão no bolso direito das calças quando te sentes incomodado, o que quer dizer que em breve não me recordarei que o escrevi para ti. Defrontamo-nos várias vezes em múltiplas batalhas e o silêncio que se ouvia dentro do carro ecoava algures. Parece que por momentos desaprendi que antes de uma batalha há sempre silêncio. Obliterei o facto de saber que enquanto se luta para não se perder o que tem, às vezes se perde tudo.
Implorei-te para proferires as palavras mágicas que me fariam desaparecer e nunca o fizeste. Contei-te todos os mitos sobre a rapariga que não corre quando a chamas, que te retira o coração e dá aos lobos para comer. Nunca acreditaste que ela existisse, não a temias e em vez disso rias como se fosse ela a presa, não o predador. Admito que até mesmo o meu coração duvidou de tudo, suspeitou que a inventámos para nos salvar e questionou-se quem viria no seu lugar para nos salvar quando estamos em apuros. Continuei segura e serena, não contestei a minha mente que testemunhava ter apanhado um deslumbre dela, de tempos a tempos. Sentámos-nos os dois, eu e tu, à espera dela, no cinema, no restaurante, no sofá, até mesmo enquanto descansavas ao meu lado. Espero sempre por ela, consegue fazer todas as despedidas sangrarem como mais ninguém, sempre quis ver-te sangrar. Ah, quem me dera ser tu para saber o que sentes agora, agora que a viste de perto.
- Sei que fui o teu maior erro e isso só torna o meu sorriso mais sinistro
19.
Pensei que demoraria mais tempo, que continuaria à espera que este amor que demorou tanto a crescer, morresse. Confesso que sempre nos imaginei a morrer sentados, tu no volante e eu no pendura. Ainda não sei como teria agido se soubesse que acabaríamos tão cedo, se te teria abraçado com mais força ou se te teria forçado até à porta aos empurrões. Perdoa-me por todas as lendas que te contei sobre desperdiçar meses a chorar, não consigo sentir que te perdi. Sempre soube que quando pedes a alguém para lutar por ti já perdeste a batalha e as malas já se encontravam prontas, descansavam perto da porta e tenho plena noção de que fui eu quem as preparou.
Para mim, amar em tempos de paz é estar disposta a mudar em prol de nós. E estávamos na mesma página, sentei-me e senti-me ao teu lado a ler o mesmo livro. E nada disto foi suficiente, ria sempre nas partes inconvenientes da história e deixava-te incomodo e incerto. Quando não te olhava sentia a tua aflição, detestava-me por não conseguir fazer nenhum de nós os dois felizes. Ouvi no outro dia que "quando a companhia é boa até o silêncio é divertido" e abomino o teu silêncio. O teu silêncio é como nenhum outro e grita-me aos ouvidos. O teu coração tornou-se impetuoso e hediondo, tinha mãos e às vezes sufocava-me o pescoço, dava-me facadas quando virava costas.
E se alguma coisa, aprazera-me poder partilhar todos os poemas em que te atirei contra a parede e te mostraste podre por dentro. O meu poema favorito que alguma vez te escrevi começa por: "Continuo aqui contigo. Contigo perante este amor que não floresce, perante este amor que eu rego e que não cresce, que desespero é não te conseguir amar desesperadamente." Que infeliz foi alimentar-te mentiras até que consegui admitir a mim própria que te criei para uma quimera e agora quando te encontro, quando abro os olhos, te sinto fora de personagem. Custava admitir a mim própria que me apaixonei em pleno teatro pelo papel que representaste exemplarmente, tanto que quando saíste de personagem esfregava consecutivamente os olhos na tentativa de te enxergar, ver-te como realmente eras.
Afrontei nos teus olhos e murmurei "adeus" baixinho, os olhos ouvem melhor que os ouvidos, pensei. Tal como o meu coração que continua a comer melhor que a minha boca, devora tudo sem compaixão e chama-lhe amor. A minha mãe sempre me deu total permissão para renunciar todas as coisas onde alguma vez me alistei, sempre soube que nunca desejei o que posso ter, que sempre salivei com o proibido. Enunciava com um sorriso que podia desistir quando quisesse, sabendo nos ossos dela que nunca o faria. E que desgosto é saber que continuar a teu lado a fez arrepender-se de tudo o que me ensinou sobre persistência e continuar a lutar mesmo com os ossos partidos.
"Nunca vi uma mente como a tua" era o que dizias enquanto me olhavas, como se houvessem planetas nunca enxergados dentro de mim. E eu já conseguia anteceder tudo isto, tenho plena noção que os astrónomos que descobriram Plutão foram os mesmos que o baniram da lista de planetas. Uma amiga lê tudo isto e afirma que não passas da lua, que és rochoso, inconstante e que não tens luz própria. Odeia a lua por todas as mentiras que nos conta em plena solidão. Exclama que eu consigo iluminar qualquer lugar.
No fim de tudo isto não consigo deixar de reparar que te escrevi tanto para não te dizer nada. Secretamente desde o começo que previ tudo isto e mantive para mim a verdade de tudo o que eras como o meu segredo mais bem guardado. Compreendo agora que te usei para esfomear a minha solidão e em vez disto lhe deste de comer. O que diz sobre ti que sempre me chamaste de "amor" quando amor foi a única coisa que te faltou?
- "Sozinha seria se continuasse contigo"
18.
O amor não é nada mais do que um engano. É só isso que sinto, que me enganaste, que me trouxeste até aqui com promessas, que agarraste na minha mão enquanto ela pairava e a arrastaste para esta nova ilusão, prometendo-lhe um toque infinito e inquebrável e eu deixei-me ir mesmo sabendo que nunca gostei de amarras. Conduziste-me até aqui enquanto sussurravas poemas que até agora só tinha sonhado, o que quer que estivesse por trás desta porta ia ser lindo.
Nunca me confessaste que não iria poder sair até me dares autorização. Reconheço que demorei até perceber que eras tu que guardavas a chave que me prendia aqui e não o amor, como teria inicialmente idealizado. Pensei que seria uma visita breve talvez por isso tenha deixado todos os meus pertences e tenha deixado quem sou lá fora. Aprisionaste-me e quando durmo junto a ti sei exatamente onde guardas a chave, mesmo assim não ouso roubá-la. Se o teu coração soubesse que pondero fugir, expulsar-me-ia e tenho medo do que me espera do lado de fora. Será que mesmo depois de me abandonar na rua para estar contigo aqui, continuo à minha espera? Serei mais eu aqui contigo ou lá fora sozinha?
Vais perceber tudo errado, nunca quis fugir de ti, mas tenho receio. Aterroriza-me a ideia de me dares de comer, saber que se a tua mão me falhar todo o meu corpo falha. Saber que a minha mãe esperou meses por tudo isto que sou, que me desenhou num rascunho, que rabiscou até me enxergar o mais perto que conseguia de alguém que podia lutar, de alguém que não pede desculpa e que nunca se sentaria para chorar, porque não há tempo. Escrevo sobre ela, sobre esta personagem que ela me criou para ser como se de uma lenda se tratasse, como se nunca a tivesse visto ou nunca a tivesse tirado do armário e envergado a arma para que pudesse lutar. No entanto, contigo tudo é diferente, deito-me num mar de rosas e não me espeto nos espinhos, não sangro mais. Nem vejo mais sangue porque nunca cortas. Ou mesmo que firas toda a minha pele continua intacta, sim, a pele, a imensidão mais visível de tudo o que sou.
O meu corpo não está habituado a desistir de todas as batalhas onde se alistou dai estranhar-te no toque, no cheiro, estranhar estar aqui contigo a curar feridas, no silêncio dos teus braços. Acredito até que a guerra tenha acabado, que todos nós tenhamos ido para casa para os braços de alguém. Talvez seja mentira, se escutar com atenção talvez consiga ouvir tiros do outro lado desta fortaleza. Admito que gosto mais de ser eu sem todas as armaduras que me protegem, sem ver o mundo como um campo de batalha. Talvez por isso te tenha seguido até aqui, até este quarto, na esperança que me protegesses. Talvez tenha deixado a armadura do outro lado da porta de propósito, sei que sem ela tenho medo de começar uma batalha que não consiga terminar, por isso repouso a cabeça no teu peito e dou a mim própria uma nova chance de começar uma vida nova. Com intuito de desaprender tudo o que a minha mãe me ensinou sobre guerra e vitórias. Assim que me feres consigo ouvi-la gritar e choramos as duas, por dentro.
- Sobre amar em tempos de guerra
17.
Agora é aqui onde nos encontramos para chorar juntos. Mas antes, há uns meses atrás, sentávamo-nos no velório, tirávamos a tristeza e o os tons mais escuros do roupeiro, perante esta nova realidade. E não me lembro de alguma vez ter vivido sem ti, talvez por isto mesmo depois de partires continue a ser o teu aniversário e me consiga imaginar, ainda que remotamente, sentada ao teu lado sorridente. Eras assim, preocupavas-te desmesuradamente e sorrias na mesma medida, enquanto o avô repudiava a ideia de se tornar mais velho.
Recordo-me tão bem daquele dia. Despedimo-nos de ti e atiram-te para um buraco até que a única coisa que consigo ver é terra, percebo que é o fim de nós e choro como se gritasse para que me conseguisses ouvir. Como se te tentasse avisar que algo também morreu cá em cima. Chorei durante um mês todos os dias por ti, como se te regasse a alma e espero que algures nasçam flores por te gostar assim. Nunca soube sofrer bem, acabo por mascarar toda a mágoa por crueldade e distância. Sei que nunca quiseste causar todo este sofrimento e mesmo agora te consigo ouvir a pedir perdão mesmo sabendo que nunca foste a culpada. Pedias desculpa porque eras assim.
Todo o ano que passou sabe a terra e amargura. Talvez setembro a partir de agora saiba sempre assim na minha boca, como a primeira vez que chorei em público desde os 8 anos. Em que solucei como se implorasse para regressares. Como se tivesses partido por vontade própria. Da minha parte só te posso confiar que o meu coração não reconhece a diferença entre visitas ao hospital ou ao cemitério, até o cheiro se assemelha e por ti prefiro assim. Saber que não sofres para respirar, tranquiliza-me e aconchega-me à noite. Agora que não estás recordo-te constantemente. Agora que és do mundo estás por toda a parte. Ainda ontem, sentei-me de frente para uma maca vazia e imaginei-te ali. Imaginei-te exatamente ali no passado com todos os teus pertences e remédios. Sonhei-nos de mãos dadas. Depois de limpar todas as lágrimas, ao finalmente abrir os olhos estava tudo vazio, não ficou nenhum pedaço de ti. Não passou de uma miragem e que felicidade não seres tu.
Espero que no céu os teus dias mais tristes sejam quando o sol não nasce ou o facto de não conseguires ouvir claramente o som dos pássaros a cantar. Também me alegra saber que não nos consegues ouvir a chorar, espero sinceramente que as nossas gargalhadas ecoem no céu, a nossa felicidade sempre adubou a tua.
- "A alegria e a felicidade são mudas"
16.
Ainda me recordo com exatidão das duas piadas que te contei assim que me ligaste para interromper o silêncio incomodo que conseguia preencher a distância desde onde me encontrava até ti. Mais propriamente 113 quilómetros.
Quatro horas antes, no que parecia ser um dia comum, o meu telemóvel tocou para me confidenciares entre gaguejos e gritos de agonia que já não me amavas, que o que quer que tenha existido dentro de ti, o que quer que eu tenha criado morreu. Agi normalmente, interpelei-te, revirei o problema e tentei percebê-lo até que me encontrei a chorar na casa de banho e quando me olhei no espelho percebi que o problema era eu. Talvez tenha sido eu este tempo todo. Mesmo agora quando todos me dizem que não te fiz luto, que em vez de te chorar, afoguei a tristeza com tudo o que bebi para te esquecer e com todos os nomes que decorei para me preencher. Mas como te fazer luto se continuas vivo por aí? Se o meu coração reconhecia o som dos teus passos até de olhos fechados, e chorava quando sabia que não caminhavas mais na minha direção.
Naquele dia, a minha melhor amiga leu-me todas as piadas que encontrou na internet. No dia seguinte arrastei-a até à praia, ela encolhia os ombros e fitava a janela do comboio enquanto me sentia a chorar. Que difícil é ignorar a dor quando ela se senta de frente para nós, quando nos encara. Que confortável é chorar num comboio quase vazio, num comboio que nos leva supostamente onde queremos chegar, mas a realidade é que nem gosto de praia. Encontro-me sentada neste comboio vazio porque quero fugir de mim e atormento-me por não conseguir. Durante todos os meses que se seguiram continuei a perseguir-me a mim mesma. A praia encontrava-se imunda, faltavam meses até o verão começar, mas na minha boca conseguia saborear o seu fim, o fim de tudo.
Mas naquele dia rimos das piadas que te contei, desabafamos e desabamos, tudo de uma vez. Morremos semanas depois, prolongamos o inadiável e arrisco-me até a dizer que durante meses te arrependeste de tudo. A minha amiga, que percorria toda a casa enquanto dialogávamos, questionou a minha sanidade mental pela forma como tive coragem de te fazer rir enquanto me partias ao meio, como te deixei confortável enquanto me despedaçavas e até mesmo como conseguia sempre rir até ao final de cada chamada. Talvez tenha gostado de ti mais do que queira admitir e talvez por isso existam cicatrizes e queimaduras de terceiro grau.
Deste significado à palavra trauma e agora passo a vida a correr. Os meus amigos continuam a contar-me sempre que te veem na rua, é como se ainda trouxesses contigo um pedaço do meu coração, como se eu fosse uma pastilha que continuasses a mastigar sempre que podes. Nego tudo e apenas rio. Desenhei e pintei por cima e ao longe quem vê pensa que o meu coração está novo, que nunca sofreu e nunca se esticou nem se desdobrou em dois. A minha mãe diz que sempre soube que tinha tudo o que era preciso para te desamar, para te deixar sem ter ainda aprendido a desgostar de ti: "Que coragem é, abandonar alguém na esperança de aprender a desamá-la. Vai-se lá saber de onde vem toda esta força".
- Vem de dentro.
15.
Já escrevi outras histórias de amor. E no que diz respeito à nossa, fiz questão de fazer toda a gente acreditar que o que tínhamos iria perpetuar, permanecer inabalável pelo tempo. Há um mês passei por ti e o meu coração não te reconheceu.
Recapitulo todo o meu ano a uma amiga de quem estive afastada. Ela abana a cabeça, esboça um sorriso enquanto toma um golo do seu café, com tranquilidade, sabendo que todas as minhas histórias acabam bem, afirmando: "Tu realmente não consegues estar quieta." E é verdade, não consigo. Vivencio esta urgência constante de me dar ao mundo, de me atirar aos lobos para poder escrever e chorar, para demostrar a mim própria que não sou feita apenas de gelo. E depois de isto tudo, de te recordar à medida que rio e choro gostava de dizer-te que foste um erro, mas isso seria maltratar-te e a minha poesia nunca o fez. Para ti sempre se aperaltou, sempre usou o seu melhor vestido e passou horas em frente ao espelho a tentar mascarar tudo o que realmente sucedeu. O teu pedido de desculpa mostrou-se tardio, o meu coração já havia desistido de varrer todo o pó que ficou no teu por não amares há demasiado tempo. Mesmo assim não te abomino. Sinto que para mim vais sempre saber a mel, dado que continuo a ser incapaz de pensar em ti sem sorrir.
Somos dois iguais, a tua alma reconheceu a minha e sorriu, como se se tivesse visto ao espelho pela primeira vez. E quando fugiste, deixei de procurar almas e encontrei conforto noutros corpos. Esclareci a todos que a minha alma ia para sempre ser tua. Noutras palavras queimei todas as cartas cujo remetente não possuía o teu nome e pisei flores durante meses enquanto sonhava com o dia em que voltarias. Esperei-te como a fiel amante que sempre sonhei ser. Perdemo-nos de nós próprios juntos, sinto que temos sido eternamente assim.
Seria impossível retribuir-te o que fizeste por mim no que foi para mim o pior acontecimento do ano. Estares tão distante de ti e, não obstante me teres puxado para perto, teres tido o cuidado de permanecer junto a mim. Porque não ignoraste o elefante na sala que era a morte da minha avó, em vez disto perguntaste onde doía e escutaste atentamente enquanto eu apontava para o peito e dizia: "Aqui, dói aqui". Sempre foste assim, imaginei-te ao longe, gentil e ao mesmo tempo intocável e foi assim que te provaste ser. Provavelmente nunca encontraste dentro de ti todo o potencial que reconheci instantaneamente quando entraste naquela sala no dia em que nos conhecemos.
De cada vez que te encontro sou uma pessoa nova, mas achamo-nos no mesmo universo. Passo a vida a reaprender-te e cada vez mais o meu coração se rende ao teu. E admito que me é raro perder uma batalha. Num outro universo encontrei-me rendida desde a primeira vez que os meus olhos se cruzaram ao acaso com os teus. Incontestavelmente existe também um outro universo em que nunca te conheci e me sinto ausente em mim a vida toda. Admito que me é fácil dormir quando sei que num outro universo não somos definição da palavra "Quase" no dicionário. Em vez disso somos felizes juntos e a minha alma dorme calmamente junto a ti. Sim, a minha alma, que tem medo de fechar os olhos.
No entanto, neste universo odiamos relógios e os nossos encontros são repentinos e apressados, existem sempre sítios onde precisamos de chegar ou pessoas para encontrar. Admito que só me apercebo disto hoje e o peso dessa realidade não me priva de dormir à noite.
- "Por um triz que não" (definição de "quase" no Dicionário Priberam)
14.
Sinto que te sonhei, que te retirei de uma das minhas quimeras e que sem querer te atirei contra mim, contra a minha realidade e agora estamos os dois sentados aqui, neste café. Ao passo que o teu olhar foca no meu, o meu coração rejeita-te, tímido e temeroso. Somos principiantes, eu e ele, diante de tudo isto, outra vez.
Perante todas as nossas despedidas o meu único desejo é adormecer mais cedo, para te ver antes da hora marcada. Para te sonhar. És calmaria e dás-me a sensação de que trazes no bolso toda a paciência e alegria que perdi este ano. Talvez seja isto que acontece quando dois signos de elementos opostos convergem, acalmas-me e ao pé de ti nem me sinto a queimar. O teu olhar confunde-me, perco-me nele e em vez de me deixares vaguear por aí, agarras a minha mão enquanto me guias. Pareces compreender que não sei ler mapas, analiso demasiado e acabo no canto oposto ao meu destino idealizado. Deves ter percebido isto pela inquietude de tudo o que trago no meu interior.
Apaixonar-me de novo significa voltar a dedicar-me a tentar ver o invisível, decorar novos padrões e reparar onde pões as mãos enquanto caminhas. Em breve não vou conseguir discriminar o meu coração e o teu e a única coisa da qual vou ter a certeza é de que existe algo cá dentro que bate e bombeia sangue, como se estivesse à espera de um desastre. E calhei-te logo eu, sim logo eu, que nunca fui capaz de tocar em algo brilhante sem me queimar. Vais analisar demasiado tudo isto que te escrevo, é uma das poucas coisas que temos em comum. Em compensação os nossos olhares falam sempre que o silêncio nos visita e não reconheço isso em mais ninguém. Até o teu cheiro já mora em mim e o meu perfume começa a esmorecer, reconhece a sua inutilidade, enquanto o teu se entranha cada vez mais.
Tenho ideia de que o amor é nada mais que um cobrador tardio, que dá sem pedir nada em troca e que um dia vem coletar à vida. Como um hospital que nos dá a vida para a retirar mais à frente. Porque o amor não tem cabimento, não o consigo medir e só consigo anteceder o desastre. O meu coração não é ingénuo, garanto-te que conhece a verdade. Enxerga que vais fazê-lo explodir, tem consciência que de todas estas verdades só vão sobrar cacos espalhados pelo chão. Sabe que o teu coração é um taco, e consegue ouvi-lo bater quando me aproximo, consegue senti-lo querendo ser o criador de todo o caos que está por vir. Lamento, mas tenho demasiado de desastre em mim para te garantir toda essa vitória e juro-te que à noite, antes de descansar, o meu coração só se teme a ele próprio.
Escrevo enquanto imagino os teus olhos como um abismo enorme, que me puxa e sinto-me a deixar-me ir, devagar. E sei que um dia vou sofrer nas tuas mãos, quebrar até, estalar como uma noz, desfeita, que para mim não consegue soar a outra coisa que não um osso a partir. Mas por enquanto a vida é boa, consigo pensar em ti e sorrir e ouço os pássaros lá fora, tudo isto existe até me magoares. A minha mãe aprazera-se e suspira sabendo que sou sempre eu a causadora do maior sofrimento, grata por ter dado vida a furacão. Que bom é poder dormir à noite sabendo que nada de mal acontece aos que causam estragos.
- Nunca me senti tão amada
13.
Narro-te com tanto desdém que consigo sentir o papel a questionar-se se alguma vez te amei. Estou confiante de que não. Adoro sentir-me confortável e és água nas meias. És mangas molhadas e nariz encarnado, gélido. És conversas desnecessárias. És piropos na rua e, ao mesmo tempo, és também as pessoas que ficam a olhar de lado. És um dia em que acordei do avesso, com os pés de fora e em que as minhas olheiras foram pintadas com carvão. Em que o meu despertador não tocou e quando abro a persiana, o sol não brilha lá fora. És acordar cedo. És barulho quando tento dormir e os pesadelos que me acordam durante a noite. És irritação e inconstância. És esperar em filas de onde não posso sair e semáforos que ficam vermelhos antes de conseguir escapar.
Escuta, se soubesse que as nossas almas não caberiam no mesmo comboio, que não conseguiríamos mover-nos ao mesmo tempo e na mesma direção, não teria entrado na carruagem contigo sabendo que iriamos asfixiar. Mas que outra maneira arranjaria de te fitar os olhos em movimento e em tempo real? Desejei muitas vezes que pudéssemos coexistir. Sonhei até que fosses exatamente da forma que te contei a toda a gente que me via sorrir. Preferiste ser vontade de chorar. Reconheço que te é inevitável e utópico até, seres mutável e já tinha visto as paisagens mais bonitas. Já me havia perdido nos jardins mais coloridos que vivem em ti. Os meus amigos escutam atentivamente todas as minhas histórias, como se de um excerto de um best seller se tratasse, e o coração deles sabe de cor que és o vilão em todas elas. Tudo isto porque te conheci-te à pressa enquanto fugias de ti.
Nem o papel que sempre me foi fiel te faz jus e só tenho vontade de te rasgar. A culpa não é de ninguém que não minha, que tenho o hábito de mascarar sempre o meu coração de guerreiro, quando tenho plena noção que faltou a todas as aulas de autodefesa em que o inscrevi. Só te devo distância e prometo cumprir a pena exemplarmente, sei que tudo isto se criou por minha causa, que sempre fui péssima com fins e que quando vi que tudo o que construí virou poeira te atirei contra todos estes poemas. Que te desamei, desaprendi e desmascarei como se deitasse tudo o que te escrevi para seres no lixo. Amar ensina-nos a desamar, percebes? Tive de desistir de ti para continuar sã. Ainda te imagino ali, perante tudo o que destruíste, que era meu. Admito que há dias em que acordo e tudo soa como a sirene daquela ambulância, o que significa que por vezes ainda vivo presa no trauma que criaste.
- Cartas enviadas da psiquiatria
12.
Escrevi-te um poema e deitei-o fora. Não, espera, atirei-o pela janela, e agora as minhas palavras para ti foram com o vento e são de toda a gente. Vais odiá-las, odeias coisas que se pertencem porque não és de ninguém, essa é a tua beleza.
Encontro-me perante um novo amor onde ele é eu, no tempo do nós. Sei disso por todas as lamurias e lamentos de como não se sente estável quando se apoia em mim e agora que lhe admiti que tremo tem insónias. Jura que me consegue sentir a descair em todos os poemas de raiva que me escreve, em vez de dormir. Somos nós, mas trocados. Somos sempre nós, ao contrário, do avesso, revirados. E eu sou tu e não posso evitar, mas rio quando me lembro de todos os teus: "Não te mereço", por só reconhecer agora a veracidade nas tuas palavras.
Os meus amigos ficam preocupados: "Ultimamente escreves tanto sobre ele. Acho que ainda não aceitaste bem nada do que aconteceu." Não entendem que escrevo porque estás ao longe à deriva no oceano. E tudo o que te escrevi foi antes de te ver além. Todos estes textos antecederem e narraram a nossa despedida quando ainda me encontrava desesperada à minha procura, perto e inconstante. No momento presente nada é assim e existe tanto que nos separa para além do tempo e da distância. Reconheço que vejo mais claramente agora que as ondas acalmaram e a madrugada chegou. Deixando as metáforas de lado, não conseguia dormir com medo de decidires exterminar tudo o que éramos enquanto dormia. Porque só tomavas decisões à noite, quando te permitias tempo para falar contigo próprio, mesmo assim desacredito que alguma vez te tenhas ouvido. Recordo-me dos dias em que me sentia infeliz e me abraçavas durante horas. Enquanto eu só pensava em desaparecer, pesava enxergar que estava ali contigo, que tudo aquilo era real e que tu não eras analgésico, mas a versão humana de todo o sofrimento que dou a mim própria de comer. Passo a vida a ausentar-me de todas as histórias onde me escrevo, como uma personagem passageira e sentia-me miserável contigo. Nunca me ocorreu perguntar-te se eras feliz. A tua verdade sempre atirou a minha para um canto e deixava-a lá a chorar.
Sempre tive medo do que este fim significaria para mim, que nunca dou parte fraca. Que parto o pé e parto a perna e continuo a andar só porque sei que fui eu quem escolheu este caminho. Percebi tanto quando te abandonei, quando escapei do barco que construímos em conjunto. Quando ganhei coragem para nadar até à costa e percebi que a travessia não era assim tão longa. Que estas águas por onde navegamos não eram assim tão fundas. E principalmente quando me apercebi que não nasci para viver em alto mar. Noutras palavras, adoro ver-te ao longe e não me sentir a afogar. Fizeste-me crescer tanto que estou a reaprender-me de novo. Como uma criança que viu todo o seu corpo expandir à sua volta, sem se dar conta e que agora confronta esta nova realidade, sem noção. Por causa de ti leio todos os meus poemas favoritos outra vez, com intuito de decidir se ainda me retratam, se ainda me contam uma verdade da qual estou certa, mas não admito. Que dádiva é aceitar que tudo isto que amei, continua a ser meu e que só tu padeceste neste coração.
- Hipermetropia ou dificuldade em ver ao perto
11.
Sei que temos momentos difíceis em que te custa olhares-me nos olhos sabendo que és a autora de tudo isto. E talvez te custe agora olhar no espelho enquanto lutas contra tudo o que este ano significou. Tenho consciência que nesta família todos engolimos a tristeza. Choramos até não conseguirmos chorar mais e fazemos promessas silenciosas de chorar secretamente sempre que quisermos. E nunca assumimos em voz alta que ainda dói, sabemos que a nossa dor puxa a dor dos outros. Partilhar com os outros que nos dói, fá-los sentirem-se compreendidos e compreender a tristeza é abraçá-la e pedir-lhe para ficar. É fazê-la sair do seu esconderijo e dar-lhe um lugar à mesa.
Sei que sabes que só me atormento quando escrevo e que quando vivo parece que tudo isto me é alheio. Como se a tristeza fosse para mim um problema de países do terceiro mundo do qual apenas ouvi falar no telejornal. Como se entregasse toda a mágoa a outra pessoa e me desresponsabilizasse por ela, garanto-te que não é o caso. Se estes últimos anos nos ensinaram alguma coisa foi a importância do que há por dentro de toda a pele que nos mascara e protege. E escuta, por dentro continuas a ser totalmente tu, nada em ti quebrou. Crescemos tanto por dentro, mãe. Pertencemo-nos mais e melhor, ensinámos uma à outra como queremos ser amadas e seguimos as regras como um manual inquebrável, mesmo que nunca o mencionemos. Acredito que as melhores coisas são ditas no silêncio. Dizem que todas as mulheres crescem e se tornam iguais as mães e cada dia que passa sou mais tu. A tua história parece-se tanto com a minha história e quando o desenlace é o mesmo rimos juntas. No meu primeiro ano longe de ti lembro-me de receber uma mensagem tua a dizer: "Há tanta distância entre nós agora e tudo o que posso fazer é desejar e rezar para que sejas feliz. Tenho tanto que te quero perguntar, mas sei que não vale a pena. Odeio o teu silêncio porque sei o quanto tens para dizer.". E penso que escrevi tudo isto, mas que na realidade só quero dizer que não me lembro de alguma vez te ter amado tanto como amo agora.
Escrevo-te poemas, mas se pudesse escrevia-te uma vida melhor. Pintava-te uma vida com as melhores cores e onde toda a gente te sorrisse na rua. Onde a saudade não fosse um peso que trazes as costas e fosse apenas uma fotografia esquecida na carteira. Onde na rádio só tocassem músicas que o teu coração sabe de cor. Mesmo sabendo que os meus ouvidos sofreriam. Escrevia-te uma vida só com amores recíprocos, porque nenhum dos outros importa e aprendi cedo que estes são os únicos que nunca doem. Na realidade nem sei se te amo bem. Nunca soube onde por as mãos nem o coração e as vezes preocupo-me tanto com as mãos que deixo o coração por aí. Espero que o tragas sempre contigo. É tão bonito ver a vida a acabar e pedir mais vida, querer mais. E é isto que quero para ti. Num outro universo nunca sofreste metade então nunca precisei de te agarrar enquanto choravas e por isso existem oceanos que nos separam mesmo quando estamos na mesma divisão e aqui, neste universo, são só passos.
Sei que nunca escrevo sobre a felicidade, mas não há dia em que não a queira mais até do que o próprio ar. Passo os dias a reaprendê-la, a reinventá-la e tenho plena consciência que se ela aparecesse à nossa porta te a entregava inteira. Já conheci a felicidade de olhos fechados e já andamos de mãos dadas por aí. Admito que às vezes consigo sentir-me a esquecer a sua morada, o que deve ser natural, ela tal como eu passa a vida a retirar-se. Às vezes sento-me convosco no sofá e juro que a consigo ver ao canto da sala, a sorrir. Ou quando finalmente volto a casa depois de uma semana de ser eu, mas longe e é para ela que volto.
- Onde mora a felicidade
10.
No início de nós fui tão eu, tão crente e crua. Sorria perante a incerteza do que este amor nos poderia trazer sem saber que seriam só umas dezenas de fotografias e mágoas. Agora quando me lembro não é difícil perceber que o fim era inevitável. Mas como dizer isso a alguém que ama? Acredito em todas as mentiras porque é o amor que me as conta. Recordo-me que foi assim que descrevi tudo o que aconteceu entre nós, quando falámos sobre o que sentíamos pela primeira vez, inevitável.
Descobri recentemente que desamar é sinónimo de odiar. Não concordo, se desamar é o contrário de amar então não existe. É absurdo, não existe contrário de amor. E mesmo que existisse creio que não o conseguiria fazer, desamar-te quero dizer. Vi a tua alma e vivi dentro de ti durante meses, não há como desamar a casa que nos acolheu, mesmo que provisoriamente. E garanto que não te odeio, mas sempre que conheço um estranho que usa o teu perfume ou tem o mesmo nome que tu, engelho o nariz, faço cara feia, como se o meu coração soubesse que o teu sabe a azedo. E até o meu bate mais rápido, a tentar escapar. Comporta-se como da primeira vez que me levaste a jantar, como se não tivesse crescido, como se não se tivesse transformado completamente desde o que fomos até ao que sou. Éramos tão ingénuos, eu principalmente, que sempre vi o amor como uma religião e quando me senti exposta, nua e julgada por tudo o que era, virei a história do avesso. Mudei todo o guião, criei novos personagens e incluí-os na narrativa.
Estranhamente foste tu quem me ensinou a devorar sem piedade e a nunca pedir desculpa. O teu coração tinha fome e às vezes gosto de acreditar que fui eu quem lhe deu de comer. Não passa de uma ilusão, tenho noção de que tudo o que te alimentei foi veneno. Percebo agora que todos os escritores se baseiam noutras pessoas para escrever. Por isso talvez, tudo isto já tenha acontecido noutro lugar. Talvez alguém te tenha retratado melhor que eu, que ainda não te consigo escrever sem nos imaginar a viver num anexo na rua onde vive também a amargura. Já acontecemos e por isso em vez de me questionar sobre o que somos agora, surgem novas perguntas. De que tamanho teremos pintado o sonho? Só pode ter sido grande demais. Será que a tinta acabou?
- Peço desculpa por tudo o que fizemos um ao outro
9.
Mas as pessoas que estão no autocarro comigo sorriem e dão gargalhadas durante toda a viagem, eu não. Gosto de acreditar que vivo no momento, mas quando o momento chega, perco-o. A minha racionalidade incomoda-me bastante. Não há como aguentar esta alma que só quer poemas e paz, sendo ela racional. É como lutar uma batalha em duas frentes e sinto-me pura contradição. Se existe algo que me conforta são as metáforas. Também elas têm dois sentidos, sendo que um tenta explicar o outro e tudo o que conseguem fazer é emaranhar o pensamento dos demais. Sempre me foi intrínseco ser caos. Existem dias em que deixo a metáfora do lado de dentro e sou a personificação de um tornado. Ainda assim, sou um acumular de frases incertas, determinada a terminá-las com ponto de exclamação. O que quer dizer que às vezes conto mentiras a mim própria e acredito. Também não acredito que as pessoas que não me lêem me amem o suficiente. Não há como amar sem tentar compreender o outro e estou certa o que minha a escrita não é nada mais do que uma forma de ver o mundo através dos meus olhos. E tudo o que escrevo nada mais é do que frases alinhadas à espera de fazer sentido.
É assim que chego até ti, tentando anular a discrepância em mim. Dou-te tudo o que tenho como se te entregasse uma carta, ofereço-me com a intenção de que me faças tua. No entanto assim que caio na tua caixa do correio só anseio ser devolvida ao remetente. Percebo que sou demasiado minha para alguma vez cair nas tuas mentiras ou para sequer acreditar no que dizem os teus olhos. Desculpa as metáforas. Provavelmente ainda não fizeste sentido de nada do que te escrevi, desculpa, nunca entendi se preferes as minhas cartas ou o silêncio infinito que tento preencher nas viagens de carro. E quero deixar-te porque confiei em ti para amares todos os meus erros e sem querer deixei o monstro crescer porque o alimentavas nas sombras.
Percebo agora que gostei de ti porque me davas a mesma sensação de vazio que sempre me foi familiar. Sempre fui inverno por dentro e sentia a contradição quando escaldava nos braços dos outros. Nunca queimei nos teus porque eras inverno, tal como eu, e enquanto estivemos juntos foi difícil imaginar o sol lá fora. E por isso acreditei que era amor, porque sentia-me mais gelada contigo por perto, menos paradoxo. Sabia que dentro de ti nevava e avisaste-me que eras lobo, confessaste que não hesitarias em atacar-me numa lua cheia. Creio que essa é a única diferença entre nós, eu não aviso.
- Meia verdade e lua cheia
8.
O ar pesa aqui, e tal como no hospital que te viu nascer, este sítio está atulhado com estranhos. Olho em volta e és a única rodeada de um monte de terra porque és recente aqui, enquanto os outros são mármore há faz tempo. Abraço a mãe e choramos diante de ti, só que não nos vês. Fez ontem dois meses. Começo a duvidar que comece a doer menos. Abraçamo-nos e o vento à nossa volta torna-se mais forte e quero acreditar que és tu.
A primeira lição de altruísmo foste tu quem me a ensinou, enquanto me olhavas nos olhos com o olhar mais sofrido e vazio que alguma vez senti. Sim, que senti, porque olhares assim não se vêm, sentem-se e quando digo que se sentem quero dizer que doem. Amar alguém é desejar-lhe o melhor cenário possível mesmo que isso nos destrua. E a ti já te custava a respirar.
Ouvi numa reportagem uma velhinha dizer: "Já só me resta a pena de a vida já ser curta". Tenho carregado esta frase comigo toda a semana, presa na minha garganta, e não sei se tenho pensado em algo mais do que sobre o peso desta verdade. E pesa porque podias ter sido tu. E não foste, porque para ti a vida foi demasiado extensa e sei disso porque até o ar te tentou sufocar. Porque sempre ofereceste à vida rosas enquanto ela, ingrata, te fazia sangrar com os espinhos. Mesmo assim não hesitavas em sorrir diante de um jardim. Paradoxal a capacidade que o ser humano tem de sorrir perante o que também o faz chorar.
Tento trazer-te flores e calma e tudo o que faço é inundar o sítio onde agora dormes. E não sou assim, é raro chorar e só choro quando sinto que estou a ser partida ao meio. Nunca estive preparada para te perder e mesmo assim deste-me tanto tempo para me preparar. Sempre repudiei a ideia de sofrer por antecedência e por isso preferi atormentar-me porque sofrias em vez de sofrer por depreender o fim. Sofri em silêncio enquanto te vi a desvanecer e soltavas, pouco a pouco, a minha mão. Escrevo-te hoje porque fez dois meses e em breve escrever-te-ei porque é a primeira vez que não estás presente no meu aniversário e não consigo desaprender-te, também não quero. E deixo um lugar vazio na mesa.
Agora quando te deixamos, mordo o interior da minha boca para evitar chorar, como se mordesse a tristeza. Deixo-a do lado de dentro do portão e sei que vou voltar para a visitar. Porque, por enquanto, tu e a tristeza vagueiam de mão dada, dentro de mim.
- Sobre a dor que ficou porque te foste
7.
"Um dia de sol nunca terá a beleza de um dia de chuva, percebes? A chuva é linda, porque são lágrimas que caem do céu." E eu rio, porque nada disto tem ou faz sentido e é uma forma péssima de começar um texto, mesmo assim é tudo em que consigo pensar. Reconheço que é também da tua natureza ler tudo o que escrevo e este encontro meu e teu só acontece assim. Inconscientemente, creio que és a melhor coisa que aconteceu à minha poesia, mas sei que é mentira. Captei no outro dia, numa conversa, que chamamos ao cérebro "mente" porque nos conta mentiras.
E sou de novo transportada para as nossas conversas, onde falamos sobre tudo o que nos trouxe até este momento, onde a verdade em mim julga as tuas decisões em voz alta e com gargalhadas, típico meu. Reconheces que tudo isto te trouxe até mim, o que discretamente é a tua forma de me dizer que não te arrependes por um segundo que seja, enquanto eu imagino todas as vidas que poderia ter vivido sem ti. No instante exato em que as tuas palavras emergem em silêncio, dou por mim a cismar todo um outro universo em que passo por ti na rua e nem olho duas vezes. Encontro-me incapaz de formar algo coerente e só me ocorre dizer-te que sinto que és um presente que comprei para mim e ofereci a outra pessoa. E já fui personagem principal noutras histórias de amor, mais elaboradas, com princípio, meio e fim. Dramas com finais previsíveis acompanhados de lágrimas, sangue e suor. Não fui a vítima em nenhuma, antes pelo contrário, sempre que vejo os bolsos sou eu quem traz a faca no bolso, o que é também uma metáfora para dizer que sou eu que dito o fim.
E escrevo maioritariamente sobre ti porque nunca foste como os outros, tu nunca levaste nada que não era teu. Não tinhas medo da faca que trago porque sempre soubeste que o meu coração dispara balas. E enquanto todos os outros me encontraram intacta e me desarrumaram por dentro, tu viste-me em pleno caos e ficaste para ajudar a limpar. Nunca tiveste medo de sujar as tuas mãos. Digo a toda a gente que pergunta, que continuo apaixonada por ti. Não sei se é verdade, mesmo que quisesse acho que nunca me deixaste. Por isso mesmo, neste momento reconheço a crueldade que é ver a tua vida do lado de fora e consigo finalmente ver a inutilidade em continuar a procurar nas outras pessoas, tudo o que sei que encontro em ti.
O fim nunca chega e os nossos reencontros acordam todas as borboletas que deixas adormecidas em mim quando sais, e eu que acreditava que tinham morrido, todas as vezes. Só tenho saudades tuas quando sonho contigo. Ultimamente sonho contigo a toda a hora e calculo que faço isto a mim própria para dar continuação à nossa história, mas não passa de uma ilusão. Quando abro os olhos, continuamos parados, à espera. Não é justo ver toda a gente que chega no meio das nossas pausas como dano colateral até voltar para ti. E mesmo assim é isso que faço, todas as vezes.
- Repetições
6.
Fomos sempre desta maneira. Quando eu lhe digo que preciso de ir, ele sente que toda a fortaleza que criamos para nos proteger dos outros me sufoca. Sei que só o altruísmo com que sempre encarou tudo o impede de me suplicar para que fique.
Li algures que pedir a alguém para ficar é só prolongar a sua estadia e adiar o adeus. E ensinaste-me a não ter medo do "adeus", tal como me ensinaste a chorar e a sorrir. Ensinaste-me principalmente a não pedir desculpa por ser eu e admito que tenho dificuldade em dormir quando sinto que te ensinei o contrário. Numa conversa de circunstância, admites que antes de me conhecer, vias todos os teus erros como falhas, como danos irreversíveis, como um inútil perante a vida, incapaz de acertar. E que depois de mim, os teus erros são só erros, os percalços são só coisas que aconteceram, que não te definem e sabes que podes sempre ser melhor amanhã. E é assim que narramos o tempo, com antes e depois de nos conhecermos e penso que é sempre assim, quando sem querer dás um encontrão à outra metade de ti na rua.
Quando dizes que te sentes mal outra vez e instável, consigo ouvir a tocar ao longe a música de despedida. Conheço-a de cor e ouvi-a tocar mais vezes este ano do que qualquer outra. E percebo que pode ser o fim de tudo isto, de toda esta era em que estivemos inseparáveis como a carne e o osso. Em que fui coluna vertebral e tu costelas. Consigo agora ouvi-las a partir por cima da música que toca. Mas tudo isto vem como um tsunami. Encontro-me cercada de perguntas perante esta nova realidade que desconheço por tê-la desaprendido, porque sei que isto já aconteceu no passado. Só sei que agora tudo dói. Não tens nenhum fósforo na mão, mas tudo à tua volta arde enquanto admites que se aprendeste a viver sem mim fui eu quem te ensinou. Se a porta está aberta fui eu quem a abriu.
Sou claustrofóbica, e pior que isso, o meu coração nunca se sentiu confortável em locais que não nos desejam. Nunca me deixou nem no pior dos invernos encontrar conforto perto de alguém sabendo que não éramos bem-vindos. Como consequência, deixou-me muitas vezes a congelar na rua. Sempre disseste que ter um coração assim é uma dádiva, talvez seja verdade. E olha, nunca escrevi um texto em que não te amasse na integra e em que não admitisse por completo que foi em ti que encontrei um espaço ao pé da lareira, em todos os meses de inverno. Sinto que nunca fomos felizes ao mesmo tempo e que só a infelicidade nos junta. E mesmo triste, várias vezes abandono a tristeza para te ver dançar com a vida, nos teus melhores dias. Foste muitas vezes eu e eu, muitas vezes tu.
Quando te conheci o único desejo que tinha era refazer-me e refiz-me contigo, construímos tudo juntos. Desde o chão até ao teto e pintaste a minha vida com todas as minhas cores preferidas. E por isso agora, quando a decoração não me satisfaz, quando não consigo chamar esta casa de lar, quando a cor das paredes me enjoa, és a primeira pessoa que chamo. E sei que sou tão segura de mim que vais rir quando souberes que só permito remodelações com o teu consentimento. Que esta casa que é o meu corpo foi um contrato assinado pelos dois e que quando falho em pagar a renda, estás lá tu, sempre. Sempre que me perco, és tu que me encontras e me levas para casa outra vez e só sei que quando questiono tudo, és a única certeza que tenho, por isso começo sempre por aí. Tal como construir uma casa, és o chão.
- Sobre ser metade de ti
5.
Novembro vai ser sempre o meu mês favorito, mesmo que o Outono me deixe arrepiada. Este ano está mais frio, avó. O teu coração sempre foi a coisa mais calorosa que conheci e agora que ele não bate mais, sinto-me a congelar. Não há dia que não pense em ti e sempre que quero chorar, és tu. Quer dizer, sou eu, mas és tu que choras em mim.
Foste a criadora, sabes? Tudo isto começou contigo. Criaste todas nós, uma legião de mulheres desmedidas que não cabem em lado nenhum. Desconfio que criar mulheres assim é como criar um exército sem nunca as mandar para a guerra. É preciso sofrer muito para criar mulheres fortes, é que este sangue não para de correr, vermelho, espesso e resiliente. Estas colunas não vergam e estas vozes nunca conheceram silêncio, não se calam e quando o mundo nos maltrata, gritamos.
Por seres a única que nunca falhou uma festa minha na escola e por muitas vezes seres a única a aparecer. Sempre fui egoísta e nisto principalmente porque te perdi demasiado cedo, porque começaste a desvanecer devagar e quando dei por mim tinhas desaparecido. É isto que significa a alma abandonar o corpo antes do corpo se abandonar a ele próprio. Amei-te a minha vida toda e quando abandonaste o teu corpo, amei o teu corpo, tudo o que ficou e agora que não estás, amo pelas duas. Sinto que nasci tarde demais e perdi todas as conversas que podíamos ter tido, claro que as imagino na minha cabeça e tento prever o que dirias, não é o mesmo.
O mês passado pela primeira vez recebi uma flor que não tua, nem do pai. E não estou apaixonada, não estava e não fiquei. Só sei que carreguei a flor comigo o resto da noite. Foi isto que deixaste em mim. Flores e calma. Se pudesse tinha ido de branco ao teu funeral, preto não te fez jus e sei que sempre odiaste a cor, mas não posso negar ao meu coração o direito de sofrer e até ele se vestiu de preto. Levei o que costumava ser o meu vestido preferido e agora olhar para ele faz-me lembrar do nosso último adeus e a voz da mãe a dizer que é a tua última morada ecoa na minha cabeça.
E tenho de parar de escrever sobre ti, ouvi no outro dia que pensamos e choramos tanto por ti que nem te deixamos descansar. E o meu coração fica acordado toda a noite a escrever-te cartas e não é justo porque ele não quer perceber que agora não tens morada. És tudo e estás em todo o lado.
- Partiste-me quando partiste
4.
E agora que sabes que como corações ao pequeno-almoço, queres que faça o quê?
Confesso que é a culpa que me devora quando vejo todos os corpos que deixo para trás no chão, e até podia dizer que o arrependimento me despedaça, mas seria mentira. Adoro cada pedaço que desfaço, cada osso que quebra e tu sabias isso. Pressentiste-o quando respirámos o mesmo ar no primeiro dia naquele café e foi isso que te atraiu. A calma que trago de mim, que te tranquiliza mesmo antes de cortar a tua garganta para te abrir ao meio. Tenho plena noção de que todas as lágrimas que deito são só efeito de tudo o que faço a voltar para mim, agora tu também tens.
A culpa não me persegue e se alguma coisa me afeta antes de dormir é a voz da minha mãe na minha cabeça como uma repetição: "Já chega, já tiveste a tua vingança, olha para tudo o que fizeste, olha tudo o que vais ter de reconstruir só para provares a ti própria que é a destruição que fica quando tu sais. Não percebo quando te tornaste assim e só gostava de conseguir fazê-lo parar. Perdes a noção de quem és e mesmo sentada à tua frente não reconheço a cara que apoias com as mãos. Tão serena e segura que me custa a acreditar que sejas capaz de causar tanto dano."
Todas as minhas relações terminam assim, acabo por pintar o cabelo e sento-me no canto mais escuro da sala enquanto os vejo destruírem-se a si próprios. Deixo o desejo de vingança consumir-me e prontifico-me a ser quem for preciso para ser a última coisa em que pensam quando deitam a cabeça no travesseiro. Para passar 1 minuto que seja a torturá-los por dentro e a culpa não é minha porque não sei arrombar portas, é verdade. Deixaram-me entrar.
- Sobre o caos que me acompanha por viver demasiado dentro de mim
3.
Nos meus sonhos mais distantes e credíveis agarras a minha mão e sussurras:
Vês, Laura? Tu és tudo isto, és indomável e imprevisível. Não corres quando eu te chamo e desconfio que nem sofras quando não te olho. És tão pedra que toda a tua poesia parece falsa e não a consigo ler sem desdém. És incurável e todos os meus pesadelos usam o teu perfume e têm a tua voz. Nunca entendo o teu ponto de vista e tens uma maneira estranha de acreditar na vida. Sei que agora não somos nada, mas foste tu que me mostraste a verdade irremediável do mundo e mesmo assim nunca te consegui amar. Sinto que gostei de ti como se gosta de limonada e conheço-te tão bem que sei que provavelmente vais analisar vezes e vezes sem conta esta frase até perceberes exatamente o que eu queria dizer. Sempre me compreendeste melhor do que eu próprio, e sempre que não me compreendia eras tu que me explicavas a mim mesmo, odeio isso em ti. Admito, quis por várias vezes afastar-me porque nunca foi minha intenção compreender-me. Sempre senti a necessidade de ser venerado como um Deus e nem sequer uma vénia me fizeste. Ela sempre me tratou como uma religião, mesmo quando não a olhava, já tu sempre foste demasiado tu e nunca te deixaste abalar pelas minhas convicções. Quando dizia que te amava tudo o que recebia de volta era um sorriso. Sempre disseste que duas mentiras não formavam uma verdade e percebo isso agora.
Por me ofereceres sempre justificações que eu nunca pedi e por falares demasiado. Por nunca me deixares acabar de explicar o meu ponto de vista e por me teres feito chorar. E já que estou a ser honesto sempre pensei que era uma questão de tempo até receber uma chamada tua e do éter às 5 da manhã e por isso nunca deixei o telemóvel no silêncio, a chamada nunca chegou. Sempre odiei a tua verdade. E admito que te odiei ainda mais quando me obrigaste a gostar de ti, quando todos os dias planeava deixar-te e nunca consegui fazê-lo. Odiei quando me traíste e sobretudo a frontalidade quando me olhaste nos olhos e disseste que se os papéis fossem inversos, não serias capaz de perdoar e que por isso não me ias pedir para ficar. E não pediste, nunca pediste. Odiei quando o fizeste da segunda vez e nem sequer me contaste, acho que sempre te abstiveste de sentir qualquer tipo de culpa.
Odeio-te sobretudo por não me teres deixado partir-te ao meio, por me teres dado esta ilusão de poder que eu tinha sobre ti e depois teres batido com a porta na minha cara com o maior sorriso de sempre após teres dito que não querias ter mais nada a ver comigo, acompanhado do teu típico: "Sê feliz". Sempre pensei que voltasses atrás, que te arrependesses e me suplicasses para ficar, reconheço agora que te pintei mal, Laura, a tua coluna nunca vergou.
- Carta imaginada de um amor tóxico
2.
Dava tudo para termos sido igual aos outros. Em vez disso, trago-te flores. Rosas brancas para simbolizar a paz que espero ainda encontrar depois de ti, dado que as vermelhas fazem-me lembrar demasiado quem sou e estou a tentar descrever-me sem remeter constantemente para a intensidade de tudo o que trago cá dentro. Trago rosas brancas porque não sei quais são as tuas preferidas mas se pudéssemos falar outra vez, tenho a certeza que não ousaria perguntar nada mais. A possibilidade de perguntar à mãe é amarga e seria como abrir uma ferida que nem sequer começou a cicatrizar e não posso. Tenho de ser linha e agulha, sempre.
Desde que me lembro, quando me aleijava e me perguntavam se estava bem, eras sempre a única pessoa que não punha em questão o que quer que fosse que eu jurasse que estava a sentir. A única pessoa que me permitia sofrer grandemente enquanto seguravas a minha mão, juravas que ia passar e sofrias comigo, sempre. Agora que não estás, tomei a liberdade de sofrer pelas duas.
Uma das memórias mais vivas que tenho nossas foi numa cama de hospital, num momento de quase lucidez onde o Alzheimer te dá espaço para falar como se fosses tu um parasita dentro do teu próprio corpo. Quando paras, me olhas nos olhos e perguntas: "Tu gostas muito de mim, não gostas?" e nesse momento só desejei ser simples. Disse um "Sim" carregado de lágrimas e engoli todas as palavras que tentavam subir pela minha garganta. A comunicação deve ser sempre bilateral, pensei e quão errado seria falar sem saber o que dizer sabendo que nem sequer estavas a ouvir. O "Sim" pareceu-me correto e genuíno, como sempre me ensinaste a ser e senti em ti que foi suficiente.
Ontem numa conversa com a mãe, foi fácil desistir da guerra que é lutar contra a tristeza que deixaste em nós enquanto ambas deixamos o escudo cair, admitindo lentamente que vai demorar até ficarmos bem. E de tudo o que já perdi sei que só te pedia de volta a ti. Já te escrevi tanto e de todas as vezes te reinvento só para te perder de novo. Entretanto depois disto tudo continuo a querer saber quais as flores que trazes dentro do peito ao lado da nossa moldura. Serão rosas? Se forem, as minhas também, claro que sim.
- Para a minha avó, 17.09.2018
1.
Na última noite que te vi recordo-me de te olhar nos olhos e dizer: "Quão bom seria se nos tivéssemos encontrado numa outra altura" e o teu silêncio falou tão alto que ainda agora consigo imaginar-te a dizer que não nascemos agora, eu e tu quero dizer. Que não somos de agora e se estás a ler isto sei que sabes exatamente o que quero dizer. Naquele momento não percebi que era o fim do que quer que tenha acontecido entre nós, agora sei. E mesmo assim já escrevemos tantos finais nesta história e eu juro a pés juntos que é o fim, mas acrescento sempre uma vírgula, para o caso de quereres voltar. Dizias que sabias que eu não era a cura, que sabias melhor que isso e então nem ousavas perder tempo a procurá-la embora admitisses ter perdido mais tempo em mim do que tinhas inicialmente planeado. E eu não nego ser um labirinto. Lembro-me de encontrar a cura nos teus olhos e agora mesmo quando te imagino distante sei que a levaste contigo. Já eu sempre fui assim, apaixonada por tudo o que vai em breve desaparecer e sei que nem te tinha notado se soubesse que tencionavas ficar.
- Para um amor de verão